sábado, 9 de janeiro de 2010

CRÔNICAS AMERICANAS I

Exórdio

O olho do tempo pertence a Horus, o deus falcão que antecedeu Osiris. Na América mais profunda pertenceu ao deus Jaguar, que está a cavaleiro da Calçada dos Mortos em Teotihuacan e que no sul recebeu os nomes crípticos de Chac Moll e de Kukulkan. Para a América o tempo tem várias dobras que não podem ser reduzidas aos tempos de seus diversos invasores, desde os polinésios aos fenícios, aos vikings aos irlandeses e aos ibéricos. O tempo histórico da América se divide entre as regiões das civilizações antigas e as regiões de civilização recente, como a Argentina, o Brasil, os Estados Unidos e o Canadá. Mas, até por antecedentes geológicos são diferentes grandes regiões da América. Uma reconstituição histórica da América tem que passar pelo modo como se vive hoje essa complexidade.

O tempo governa os espaços, como nos dizem a astronomia e a história. Para a sociedade, o tempo comparece na forma de memória. O controle da memória é uma forma de poder que se exerce selecionando de que se lembrar e como disputa pela modernidade na América o controle da memória é um modo de confrontar com a dominação e de construir uma identificação mais que uma identidade transitória. Para o Brasil essa disputa pelo tempo memória é fundamental para perceber o futuro.


O cenário em 1970

A história com que tratamos não começou em 1970, mas aquele foi um ano chave que situou opções futuras e construiu uma releitura dos vinte anos anteriores. O fim da década anterior ficara marcado por um conjunto de eventos em 1968, em Praga, Paris, Washington, México, que indicaram, de diferentes modos, grandes rupturas nos sistemas estabelecidos. Foi, também o tempo do acirramento e fim da guerra do Vietnam e da guerra de 67 no Oriente Médio. O fim do qüinqüênio ficou denominado como de uma crise de combustíveis, mas demarcou uma quebra do padrão de acumulação mundial de capital e encabeçou uma revolução dos transportes e uma reestruturação da produção industrial. O mundo ganhava novo sentido de internacionalidade e a América Latina passava a uma integração forçada com essa nova mundialidade. Surgia o poder das multinacionais.

Adiante voltaremos ao acontecido por estas plagas nos decênios de 1950 a 1970. Em 1970 Prebisch deixou a UNCTAD e voltou para Santiago do Chile, já não para a CEPAL senão para retomar o controle de seu projeto predileto, o Instituto Latino-americano de Planejamento Econômico e Social – o ILPES – concebido para pensar ativamente a transformação do continente. O ILPES era o herdeiro direto da CEPAL, mas não era um órgão regular de consulta das Nações Unidas e tinha as mãos livres para fazer consultoria, realizar cursos e desenvolver pesquisas segundo suas próprias prioridades. Podia levantar questionamentos que não poderiam ser feitos por um órgão de consulta. Um ambiente onde era possível pensar de modo crítico. Criava-se um problema interno de representatividade em relação com o debate central sobre as políticas econômicas dos países latino-americanos, já que os documentos de consulta continuavam sendo elaborados pelo Departamento Econômico da CEPAL. O ILPES podia escolher suas prioridades. Surgia uma proposta, praticamente inevitável, de retomar os questionamentos de 1949, que tinham dado lugar ao aparecimento da teoria da relação centro-periferia. Esse desafio foi tomado no segundo semestre de 1970, quando Prebisch reuniu uma equipe de vinte pesquisadores para empreender um estudo que deveria substituir o famoso Estudo de 49, mas que jamais pôde ser concluído.

Na verdade estavam todos perplexos com acontecimentos que desmontavam teorias estabelecidas e havia poucos com a coragem de dizer que era preciso voltar às bases. Daí a enorme importância de homens como Myrdal que se colocavam “contra a corrente”, uma espécie de Lúkacs das ciências sociais que se declarava não marxista e exibia um sólido conhecimento de Marx. O debate teórico da década anterior estava esgotado. A teoria econômica de Solow, Hahn etc não passava de um exercício mecânico sobre pressupostos monetaristas sem imaginação. A sociologia se renovava com Giddens, Touraine, Bourdieu, Baudrillard. Mas a principal força da época vinha da filosofia com novas leituras de Lúkacs e de Gramsci, com Habermas. Já se via que no campo social a criatividade ficava por conta da História e da Filosofia.

A perplexidade não veio por acaso. Em 1970 ecoavam os tumultos urbanos de 1968 e a Primavera de Praga. Terminava uma década de juros baixos e se configurava uma crise de endividamento externo, anunciada por Avramovic. A economia internacional absorvia uma notável revolução dos transportes e das comunicações, ao tempo em que registrava a ascensão das empresas multinacionais (VAITSOS, 1978). No próprio ambiente da CEPAL e do ILPES já se perfilava outro discurso, de cunho sociológico, basicamente de estofo weberiano, sob os títulos gerais de marginalidade e dependência. A ruptura com o discurso economista pós-ricardiano de Prebisch, através do qual se descobriam as diferenças entre uma corrente marxista em contraste com a corrente weberiana que prevalecera sob a influência de Medina Echevarria seguido por outros sociólogos como Aldo Solari e Fernando Henrique Cardoso.

As leituras de teoria ou as explicações de corte teórico formadas na década de 1960 registraram o abalo de terem que registrar e reconhecer experiências nacionais que não se enquadravam nas receitas keynesianas. Literalmente, a história entrava pela janela, quando se enfrentavam os problemas de planejamento na Bolívia do governo Paz Estensoro – que queria fazer reforma agrária – e adiante no de Velasco no Peru, e já no Chile de Frei em que Ahumada inseria a “chilenização” do cobre. A América Latina já registrara a ferida representada pelo golpe que derrubou Arbenz na Guatemala e assistira as pressões sobre os governos socialistas da Jamaica e da Guiana do Chedi Jagan. O discurso do planejamento não podia mais ser “acadêmico” isto é, ficar nas mãos de tecnocratas reverentes aos impérios. A Revolução Cubana colocava um dilema que foi respondido por diversos técnicos do ambiente da CEPAL que foram para lá. Alguns chilenos que foram para Cuba foram posteriormente assassinados pelos sicários de Pinochet em 73, como aconteceu a Ricardo Garcia.

Os limites internos da industrialização eram os mesmos nos diversos países latino-americanos onde o bloqueio da classe media também significava a estagnação do mercado interno. É curioso como os economistas tinham ou têm dificuldade em entender que o mercado é o ambiente de negócios, como nos ensinou Marshall. Os estudos de economia industrial datados da década anterior revelavam-se ingênuos por não perceberem as mudanças na estrutura das empresas e ignorarem a aliança entre os grandes capitais e os governos nacionais. A análise econômica industrial continuou tecnicista, isolando-se da agricultura, sentindo-se mais avançada que o comércio, ignorando o preceito de Marshall que o capitalismo se faz mediante negócios que envolvem todos os setores. Perdeu-se muito tempo trabalhando com uma suposta separação entre agricultura e indústria, assim como se perdeu tempo transformando a caixa preta de serviços em caixa de primeiros socorros.

As experiências que se acumularam entre 59 e 69 decretaram o esgotamento da teoria econômica pós-marginalista, dita neoclássica, saída da combinação das análises de Paul Samuelson e John Hicks. É curioso que ambos pretenderam ser herdeiros de Keynes, o primeiro pretendendo inovar em teoria dinâmica e o segundo dispondo-se a “completar” idéias de Keynes com seu falido A crise da economia keynesiana
[1]. Observe-se que o campo da economia neoclássica, essencialmente acrítico, transformou-se em uma sociedade de elogios mútuos, com pequenas divergências entre marginalistas neoclássicos e marginalistas keynesianos, onde autores anteriores são citados apenas para lembrar algum dispositivo de análise. É elegante citar Marx, mas está claro que a maioria não leu nada dele e não entenderam mas não gostaram.

Os próprios adeptos da ortodoxia não sabiam muito bem para onde ir, porque não dispunham de ferramentas para dar conta das mudanças. Mas a história não é a da teoria, senão a teoria reflete a história. No mundo saxão, que se apresentava como único capaz de produzir e conduzir a teoria social, especialmente a econômica, formava-se um novo escolasticismo que chegaria à insanidade de supor que as ciências sociais começavam com os Estados Unidos, como insinuam Huntington, Fukuyama e outros. Não por acaso, o atraso com que a academia saxônica leu os grandes autores alemães, suecos e franceses, por não dizer outros, sempre preferindo os mais conservadores, os mais recalcitrantes a reconhecer a pluralidade civilizatória essencial. Marshall
[2] e Schumpeter foram tardiamente redescobertos através de partes não polêmicas de suas obras. Kalecki foi descoberto por Joan Robinson e apresentado como um quase Keynes e não como o socialista que foi. Anos mais tarde Gramsci também foi pasteurizado e apresentado como um crítico de Marx[3].

Aos que tivemos a oportunidade de transitar entre os mundos culturais do poderio econômico e militar instalado e da periferia sujeita a oscilações de incerteza, foi dado ver a bifurcação entre a visão de mundo da dominação e a que se afastava dela. O fim da década de 60 revelou uma pletora de pensamento social e filosófico que mostrou a importância do retorno aos alicerces históricos da teoria. Autores como Henri Lefèbre, Jean Lojkine, Manuel Castells, David Harvey passavam a ser leitura obrigatória junto com Georg Lúkacs, Sartre, Merleau-Ponty, Camus, Foucault, todos do Primeiro Mundo, mas onde Samir Amin, Panikar faziam parte do cenário onde já estavam Prebisch e Celso Furtado
[4]. Tardaria muito para que se percebessem os fios condutores entre as obras desses autores, para que se situasse a linhagem Sartre – Foucault – Badiou ou que se percebesse o significado do desvio da teoria critica entre Adorno e Habermas. Mais ainda, para que se desmistificasse corpos doutrinários sutilmente transferidos como os do pragmatismo.

A ruptura do padrão de acumulação de capital correspondia a uma ruptura nas ciências sociais e a um descobrimento cultural que ficou por conta da literatura, onde a América Latina sobressaiu mais que o Velho Continente, com Roa Bastos, Cortazar, Asturias, Rulfo, Vargas Llosa e Garcia Marquez. O descobrimento da literatura como linguagem historicamente situada e como voz do mundo social revelou uma independência que se tornaria essencial para a América (JAMESON, 1995). O descobrimento da pluralidade historicamente formada e da identidade societária por trás da aparente pluralidade cultural seria inacessível a antropólogos desconhecedores da história do continente, embasbacados com Karl Wittfogel e Eric Wolf. O país com menos história, a Argentina, foi o melhor historiador e trouxe à baila a obra de Romero.

No plano político o cenário de 1970 na América Latina já estava contaminado pela nova vaga de golpes que começou em 64 no Brasil, prosseguiu em 67 na Argentina com a derrubada de Ilya e alcançou seus momentos mais trágicos em 73 no Chile e em 76 na Argentina. A corrente mlitar “azul” dos generais Ongania e Lanusse começava uma linhagem de militarismo adepto à Escola do Canal de Panamá notavelmente repetitiva. No Chile, conquanto o golpe liderado por Pinochet tivesse evidentes ajudas dos norte-americanos, dos ingleses e dos israelenses, teve a peculiaridade de uma inspiração franquista, com um radicalismo que nada tinha a ver com a geopolítica norte-americana. A versão chilena pós-franquista, tinha sua própria visão imperial, com pretensões a ser a Prússia da América Latina, colateral de seus rivais argentinos simpáticos ao nazismo. Não se deve esquecer que a corrente “azul” de Ongania, Lanusse e outros ganhou a disputa com uma corrente “colorada” liderada pelo almirante Rojas, que era claramente pós-nazista. Revelava-se que o militarismo na América Latina estava impregnado de raízes ideológicas pré-industriais, que continuava racista e pensava em termos de destino manifesto, um conceito herdado da dupla Hitler- Mussolini, mas que identificava com a direita castelhana colonialista. Pode-se considerar que os golpes militares da década de 1970 estavam ideologicamente situados com categorias da estrutura de poder do início da Segunda Guerra Mundial. A associação do peronismo com os nazistas, o projeto de domínio da América do Sul passaram por cima do intervalo dos Radicais Independentes vindos de Irigoyen e a queda de Frondizi significou a volta dessas ideologias retrógradas atualizadas.

O Brasil não fazia por menos, mas teve a graça de suceder o ufanismo do ‘milagre econômico” por uma visão realista de uma política internacional essencialmente prática, apesar de se antecipar ao famigerado Consenso de Washington com a política de equilíbrio macroeconômico e de desestatização promovida por Mario Simonsen. Os desastres de política econômica da década de 80 não fizeram mais que ecoar o atrelamento da economia brasileira ao espaço imperial do norte. Afinal, o fim da ditadura deu lugar a um retrocesso político de uns trinta anos. A saída do aperto através de um conservadorismo pragmático marcaria as sucessivas políticas desde Itamar Franco, que dariam lugar a que os governantes se atribuíssem sucesso simplesmente por seguirem o caminho mais prático. Os inconvenientes de corrupção seriam apenas danos colaterais. O futuro a nós pertence.
[1] John Hicks, La crisis de la economia keynesiana, Barcelona, Labor, 1976.
[2] É sintomático que a visão de Marshall do sistema econômico como regido por deslocamentos graduais das variáveis e de equilíbrio temporário tenha sido praticamente ignorada por seus leitores anglo-saxões.
[3][3] Na reivindicação de leituras gramscianas de Gramsci vale a pena ver os textos de Nicola Badaloni e os comentários de Carlos Nelson Coutinho, principalmente em sua introdução à tradução da Concepção materialista da história.
[4] Furtado já foi redescoberto umas duas ou três vezes e passou a ser elogiado por cidadãos que não o leram e que nada têm em comum com ele. Tornou-se um macroeconomista e não mais um economista de formação histórica dotado de sentido critico.

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