terça-feira, 28 de julho de 2009

A CRISE DO CAPITALISMO CENTRAL

Realidade histórica e percepção da crise

O capital triunfante, que se sentia seguro sobre a vitória política do neoliberalismo, não contabilizou os riscos que acumulava com a combinação mortífera de uma rentabilidade escritural montada em especulação, com uma propensão ao consumo que há muito deixou de ser marginal. Os deslocamentos na composição do sistema mundial de poder, que já se tornaram incontestáveis, representam os sintomas de uma contradição na base da sustentação do sistema econômico globalizado, apareceram no endividamento generalizado dos sistemas nacionais e no aumento exponencial dos custos de energia. A cena da crise se montaria sem que seus personagens percebessem sua profundidade.

A crise não é um fenômeno técnico, é um processo social, econômico e político, que envolve responsabilidades que devem ser identificadas e culpas que devem ser assumidas. Esta crise surge da voracidade do capital especulativo, que é animada pela autorização tácita para especular de modo incontrolado pela sociedade. A expressão crise aqui se refere às turbulências do sistema capitalista de produção, que não podem ser confundidas com crises bíblicas nem com desastres naturais de esfriamento e ou de aquecimento da calota polar. A noção de crise está ligada ao modo de transformação da sociedade do capital que persegue fins não confessos (Coletti, 1978). Por isso, a explicitação da relação entre fins e meios configura um embate ideológico.

A divisão entre os que acham que as crises são incidentais ou que são orgânicas ao sistema capitalista de produção sempre foi um corte essencial da análise da economia mundial. De um lado, está a perspectiva histórica e de outro lado estão os neoclássicos e neo-schumpeterianos. A suposição de que as crises são incidentais, ou que ela são fruto de deficiências circunstanciais de gestão do capital, é que permitem sustentar um discurso oficial que atribui esta grande crise a incompetência bancária ou a perda de controle do endividamento dos grupos médios de renda sem jamais reconhecer que haja desvios de conduta. Perdem-se de vista, por descuido ou por opção, a complexidade do processo da crise e a combinação de fatores que se encontra em seus fundamentos.

A visão em perspectiva histórica do processo da crise no desenvolvimento da produção capitalista revelou como a teoria dos ciclos econômicos constitui um divisor de águas entre as teorias da economia nacional e as do capital (Coletti, 1978), assim como uma divisão entre as hipóteses teóricas de ciclos do sistema produtivo e de ciclos dos negócios. O aumento de complexidade do sistema e da volatilidade do capital, torna necessário examinar como se coloca historicamente esta crise e como ela é percebida pelos diversos participantes da economia mundializada, tanto pelas nações como pelos grupos privados. A hipótese básica escolhida é que a inserção na esfera efetivamente globalizada é desigual e variante, entre os componentes do bloco hegemônico e os que integram as diversas periferias com suas condições desiguais de industrialização e urbanização.

Ao reconhecer que há um centro e uma pluralidade de periferias no sistema mundial do capital, com diversos modos de interação, somos levados a entender que precisamos de uma reflexão sobre o modo de funcionar da sociedade do capital, que nos mostre como esta crise é gerada e como se transmite. Para alcançar esse objetivo, precisamos de uma reflexão sobre o capitalismo central, através de seu centro hegemônico que é a economia norte-americana, com seu modo de se reproduzir e de participar da economia mundializada. A crise hoje aparece como uma disfunção da economia norte-americana que se projeta sobre o mundo, mas não como um movimento próprio da reprodução do campo mundializado. A articulação do poder econômico e do político que comanda o mundo globalizado resiste a reconhecer que se trata de uma crise do processo do capital, mas age em função desse dado, alterando o controle do capital financeiro, desprivatizando o controle de instituições financeiras e estatizando bancos. O contraste entre o discurso e a ação fica mais claro quando se vê que o modelo de centralização do poder econômico é mantido: apoio a bancos antes que a pessoas.

Essa desordem segue sua forma inicial, e se propaga no componente europeu do bloco hegemônico como uma brecha no setor imobiliário, quando nos EUA já atinge camadas mais profundas da formação de crédito. Há um problema específico da conexão entre os mecanismos internos da reprodução do sistema e os mecanismos que respondem pela articulação da esfera mundializada. No plano interno há uma distância entre as aplicações de recursos de poupança, que têm aversão a risco e buscam renda garantida e as aplicações dos setores em expansão e do capital financeiro especulativo, que tratam de maximizar renda e têm que aceitar riscos. Esta é uma base da crise do setor imobiliário, que é onde esses dois tipos de aplicações se encontram. No plano internacional os movimentos de capital financeiro se realizam sobre informações reflexas de desempenho de mercados, que são agregações de representatividade variável de desempenho de empresas.

Não há dúvida sobre a origem interna desta crise, que foi apresentada ao mundo como originada no setor imobiliário. Mas, sem desmerecer da força desse argumento, resulta-nos impossível separá-lo do modo de reprodução do centro hegemônico e esta, sem dúvida, é uma combinação de elementos econômicos, institucionais, culturais e militares. A crise financeira combina sempre uma crise de confiança, que é subjetiva, com um desajuste entre propostas de produção e condições de demanda, que é uma situação objetiva. O fundamental é verificar como o sistema processa a crise e como sai dela. As crises são tão complexas como o sistema produtivo é complexo e tão rápidas como ele opera. A questão agora é que a crise de confiança se encontra com situações concretas de desajuste entre as condições de risco do capital tecnicamente avançado e as condições de segurança necessárias para os pequenos capitalistas.

As manobras do capital financeiro, entre aplicações em mercados em expansão – comparadas com aplicações em mercados estagnados ou de baixa rentabilidade – acabou por comprometer os controles técnicos das margens de risco, na prática aumentando as vantagens do grande capital que tem melhores condições de tratar com condições variáveis de riscos. Essa perda de controle sobre a administração dos riscos permitiu que as grandes empresas aplicadoras de dinheiro se excedessem em aceitar riscos que já eram compatíveis com os rendimentos daqueles que contrataram hipotecas e que não poderiam pagá-las. Não cabe acusá-las de especuladoras porque sua função no sistema é especular.

As informações relativas a esta crise, que se apresentou na forma de uma crise interna dos EEUU que se expande ao mundo do capitalismo através do mecanismo da bolsa de valores, mostraram a força de mecanismos de conexão entre os fundamentos da economia interna da nação hegemônica e o modo de funcionamento da esfera globalizada. O custo da hegemonia está no centro da questão e compreende a manutenção de padrões de consumo com componente suntuário cada vez maior e os custos de sustentação do poderio militar. Não é por acaso que o Império sinaliza uma retirada ordenada do Oriente Médio, adotando medidas de compensação na defesa de Israel.

Neste contexto, a opção pela abordagem histórica é imperativa. Na construção de uma análise separada dos preconceitos da ortodoxia marginalista é preciso, primeiro, delimitar o poder explicativo dos argumentos “normais” ou ortodoxos, ou colocá-los diante do que são novos argumentos decisivos na crítica da atual hegemonia. Assim, cabe destacar o custo social cumulativo do grande consumo, isto é, a combinação de consumo de luxo com quantidades de consumo incontrolado. É o consumo dos grupos de alta renda, que está concentrado nos países mais ricos, especialmente nos EEUU. Esse grande consumo civil não parou de crescer desde o fim da Segunda Guerra Mundial, aceitando-se como um dado necessário da sustentação da produção capitalista, sem admitir que ele represente um desgaste do sistema de recursos físicos. Se os usos maciços de combustíveis no inverno são irrecusáveis, o mesmo não pode ser dito da potência dos automotores e do uso incontrolado de ar condicionado. O argumento sobre o grande consumo está ligado à lógica fundamental da sociedade de consumo. (Baudrillard, 1968), mas atinge um problema muito mais profundo da lógica da reprodução do capital nas sociedades avançadas, onde grandes áreas de consumo foram afetadas por modificações das condições materiais de vida que parecem mais sólidas do que realmente são. O aparecimento de uma visão crítica desse viés do processo do capital pode ser reconhecido como uma manifestação contraditória de uma consciência oriunda de posições de classe que caracteriza as camadas mais ricas da estrutura social. O deslocamento de identidade de que nos fala Hall(2006) resume uma fragilização da situação de pertenência que se encontra na identidade nacional entre os latino-americanos em geral, mas que compartilha raízes regionais mais fortes entre os europeus ou raízes etno-culturais entre os norte-americanos. O grande problema da mobilidade social revelou aspectos descuidados dessa volatilidade da condição de identidade, que se projeta na atividade política em geral e na desconfiança apriorística de tudo que se identifique com ideologia. As atitudes perante a questão do ambiente são as mais evidentes e que revelam uma revolução do consumo que deve ser examinada em sua totalidade junto com condições contraditórias de solidariedade dadas por um individualismo gerado por essa perda de identidade.

Por causas naturais

Curiosamente, o reconhecimento da importância dos processos naturais na economia deveu-se ao cientificismo do fim do século XIX, que advogava o controle da natureza, antes que à consciência da ecologia, quando ainda não se incorporava o conceito de ecologia. A questão hoje consiste em saber como se insere a visão das causas naturais na construção de um pensamento cientifico posterior à inclusão dos conceitos de complexidade e de caos, quando se entende que o sistema socioprodutivo é atingido por processos culturais que se apresentam como imprevistos, mesmo quando sua aparente incerteza se deve a que eles são parte de outras escalas de tempo não controladas como é o caso do degelo da calota polar ou da corrente de El Niño.

Os fundamentos naturais das crises econômicas tiveram certa projeção no passado, quando se pretendeu formar uma visão integrada dos ciclos do sistema produtivo (Haberler, 1958), que não se limitava ao horizonte dos negócios que depende de uma visão microeconômica do problema (Schumpeter, 1961). Se bem que esses cuidados com os fundamentos naturais das crises aconteceram antes as análises de impacto ambiental ganhassem a acuidade que têm hoje, eles tiveram a virtude de mostrar a necessidade de estabelecer padrões de raciocínio compatíveis com o reconhecimento de que a sociedade de hoje funciona com padrões de complexidade crescente. Surpreende, portanto, que os efeitos dos furacões Katrina e Ike não tenham sido reconhecidos entre as causas da irrupção da crise na economia dos EUA. A economia norte-americana tem estado submetida a processos naturais violentos como os furacões, porém estes, especificamente, atingiram o sistema de produção de petróleo e derivados.

A não consideração desses elementos reforça a crítica de que há uma simplificação indevida na análise das causas da crise. Como se os ciclos pudessem se formar apenas no sistema financeiro. Ciclos econômicos e crises teriam que ser tratados numa perspectiva sistêmica, onde as noções de processo e de totalidade são essenciais (Marchal, 1959). A subordinação da noção de crescimento à de tendências inerentes a estruturas e historicamente situadas seria um requisito necessário a uma análise econômica realista (Nurkse, 1961). Hoje está claro que o processo do pensamento keynesiano, que se apresentou como mais avançado que o velho marginalismo de Jevons e Marshall, foi um aluno deles, que se envolveu em reducionismo monetário. A corrente neoclássica hoje atingida pelas práticas intervencionistas dos Estados ricos, representa uma total incapacidade para colocar a análise econômica em termos de tempo real. Não surpreende, portanto, que a percepção da crise tenha se restringido ao circuito imediato das transações financeiras e tenha descartado os efeitos dos processos naturais.

Precisa-se agora recuperar o significado das causas naturais na formação de ciclos a partir da perspectiva social. A influência das causas naturais deve hoje ser colocada em um quadro de aumento proporcional dos efeitos indiretos dos processos naturais no sistema produtivo em seu conjunto, portanto, com efeitos que se prolongam no tempo, seguindo trajetórias desiguais. O modo mais razoável de observar esses fenômenos parece ser o de registrar os pontos de impacto e acompanhar o desdobramento dos efeitos secundários segundo se formam impactos derivados combinados que geram novos rumos da expansão ou da contração do sistema produtivo. Esta abordagem de análise de circuitos, que tem sido usada por biólogos e em sua contribuição à análise da ecologia (Okum, 2006) em geral, tem um ponto de especial interesse, que é o cruzamento de efeitos meramente objetivos com a subjetividade dos processos sociais. Como as crises econômicas são sempre deflagradas através de mudanças coletivas de comportamento, é preciso colocar essas mudanças de comportamento como leituras culturalmente definidas de dados objetivos dos processos naturais.


A revolução do consumo

O desenvolvimento do sistema capitalista de produção envolve uma transformação do consumo, em que há uma distribuição do consumo atual possível e uma apropriação da capacidade de consumir realimentando o mecanismo social da desigualdade. O problema, diz Conceição Tavares, “da forma assumida pelas relações de produção com sua historicidade e seu desenvolvimento contraditório, fica reduzido a uma luta pela distribuição do excedente, que termina numa luta pela distribuição do consumo”
[1]. O que se passa aqui a denominar de revolução do consumo é um movimento geral de aumento de quantidades e de ampliação da variedades das mercadorias consumidas, que compreende as transformações do consumo dos segmentos mais ricos da população mundial e a inclusão de massas, à condição de consumidores principalmente nos países periféricos ascendentes. Vários autores marcaram o grande choque cultural que representa a chegada no ambiente do consumo aparentemente ilimitado dos grupos de maior renda mesmo em países periféricos como a Índia, a Rússia e o Brasil. A revolução do consumo não pode ser reduzida aos termos de consumo individual, por mais importante que ele seja, simplesmente porque transcende a esfera das pessoas, ao representar o descobrimento de um imperativo de interesse coletivo, que aparece em temas tão variados como os códigos de trânsito, as leis contra poluição sonora ou a legislação de proteção de mananciais. O condicionamento coletivo do consumo individual se estende aos diversos níveis de renda, apesar de que obviamente diminui progressivamente para os grupos de maiores rendas.

O fundamento ideológico da revolução do consumo provém de que ela compreende as duas etapas de difusão de padrões e de desconstrução e superação de padrões, tal como acontece com as populações superurbanas
[2] , que procuram estilos de vida que dispensam o automóvel próprio e os trajes formais. Em sua essência, a revolução do consumo é um movimento que converte cultura em economia, mas que opera de modo contraditório com a acumulação. A centralidade do consumo cria padrões de valor que não são compatíveis com a realidade da formação da renda disponível. O endividamento tornou-se parte essencial do funcionamento do sistema, onde se combinam o endividamento externo das nações, o endividamento interno dos governos, o das empresas e o das pessoas.

No ambiente econômico modulado segundo os modos culturais do grande capital, a progressão do consumo se separa por completo dos horizontes dos grupos médios de renda, guiando-se mais por referências de símbolos restritos de classe que por eficiência do consumo. A difusão dos meios de comunicação permitiu que as maiorias tomem conhecimento de padrões de consumo que não podem sequer ver, mas que se tornam referências idealizadas nas novelas e nas revistas de modas. É preciso, portanto, distinguir a revolução do consumo dos grupos de rendas elevadas da revolução do consumo das populações numerosas dos grandes países ascendentes. Esta é a revolução do consumo, que se realiza com a incorporação progressiva de grandes números de pessoas que se tornam consumidores, com perfil de consumo inicialmente muito simples, mas com extenso impacto quantitativo e rápida diversificação.

A nova revolução do consumo periférico ascendente atinge o sistema da economia mundial induzindo os produtores a reprogramarem suas metas e planos de produção, portanto, atingindo o modo de expansão do mercado mundial. Sinteticamente, a revolução do consumo é uma força transformadora da economia mundializada que cruza com outro elemento fundamental de uso de recursos, que é a despesa militar. Nas décadas de 50,60 e 70 os principais movimentos da revolução do consumo aconteceram por conta dos EUA e da Europa ocidental. Desde então cresce o consumo asiático liderado pela China e aparece o consumo das novas nações árabes ricas e da América Latina. Há um componente de despesa militar dos diversos países, segundo o papel que cada um deles desempenha em escalas regionais de poder e a despesa que é determinada pela hegemonia econômica, política e militar. O custo da hegemonia está hoje no centro da questão, porque a nação hegemônica realiza despesas imensas para manter sua posição e deixa de dispor de meios para transferir os custos das guerras para outras nações. A referência geral de que as despesas militares norte-americanas se comparam com as das demais nações em seu conjunto indica a insustentabilidade dessa situação em médio e longo prazo, com uma previsão, quase inevitável, de uma redução relativa do poder econômico e militar dos EUA frente a nações de grande porte e melhor dotadas de recursos energéticos.

Percebem-se dois modos de lidar com essas questões, que são os de comparar o peso das despesas com o esforço bélico na despesa nacional tota e de comparar as despesas bélicas com as de educação, onde estas sejam representativas do campo social em seu conjunto. Em ambos os casos são implicações de uma distância crescente entre a reprodução social em geral e a reprodução do capital integrado aos mecanismos diretos de poder. Há uma questão relativa aos mecanismos do capitalismo central hegemônico e aos do capital sub-hegemônico ou adstrito ao poder econômico, mas sem poder militar, que é o caso da Europa ocidental. A União Européia não poderia montar sua nova lei de imigração nem adotar um colonialismo sutil pós-colonial se não estivesse amparada pelo poderio bélico norte-americano. Inversamente, pode-se dizer que a crise do capitalismo central tende a por a Europa numa posição defensiva e a mudar suas políticas em relação com as nações periféricas. Afinal, não é por acaso que a atual política de pilhagem de recursos humanos qualificados vem junto com políticas diferenciadas país por país nem que as políticas de financiamento revelam um movimento de expansão na América Latina.


Os mecanismos da produção social da crise

“O mercado que se auto-regula e que penetra completamente na sociedade não passa de utopia da sociedade burguesa” Agnés Heller

A crise atual assusta por suas proporções e por se desenvolver por imprevistos no coração da nação hegemônica. No entanto, não deveria surpreender tanto, se considerados os sintomas de tensões sem solução no modo de reprodução do capital em seu maior centro de financiamento. À parte do fato de que o sistema do capital opera mediante combinações de capitais que têm diferentes condições de inserção no mercado de dinheiro, há diferenças de velocidade de circulação que desviam o dinheiro capital para onde ele pode circular mais rápido. As revoluções tecnológicas do período de 1960 a 1980 acentuaram essas diferenças e fortaleceram a posição dos mercados em expansão na condução dos rumos do capital. O caráter cíclico fundamental da reprodução do capital, que já mostrava alterações de seus intervalos de tempo e de duração desde a Guerra da Coréia, mostrava-se agora modificado pelas novas diferenças entre economias nacionais em expansão e economias quase estagnadas. As grandes corporações e as empresas mais criativas passaram a se deslocarem mais na direção dos mercados em expansão, o que significa se transferirem mais para a China, Rússia, Índia e Brasil, em parte subordinando a reprodução do capital europeu a esses mercados e em parte decretando a necessidade do mercado norte-americano de reagir de modo satisfatório para absorver essa nova situação. A economia norte-americana concorre com a China pela aplicação de seu próprio capital, onde há diferenças de prazos e de retornos entre aplicações com diferente capital social básico e diferentes condições de remuneração do trabalho. Há, portanto, uma novidade no quadro da formação do ciclo, no que ela se gesta na relação entre os integrantes do capitalismo central e em sua relação com as periferias do mundo econômico, onde passam a ser determinantes as diferenças de condições concretas de reprodução do capital, que estão representadas pela relação orgânica entre os mercados em expansão e os mercados semi-estagnados.

Assim, sob condições diferenciadas de remuneração dos capitais aplicados, mudam as condições de articulação entre a produção de bens de consumo e a de bens de capital, modificando-se a velocidade de reposição de equipamentos em cada um desses dois departamentos, ,portanto, mudando as condições sociais da formação do ciclo. Parte-se do mesmo ponto de sempre, de que a produção capitalista é um processo cíclico em espiral, que se realiza através de mudanças irreversíveis na composição do capital e onde coexistem diferentes tipos de movimentos cíclicos e onde mudam as condições técnicas da formação dos ciclos.

A explicação dessa tendência incoercível à crise descansa em duas observações principais que ligam a necessidade de reproduzir cada vez mais capital acumulado com os custos dessa acumulação em termos de energia, onde essas duas condições se refletem em momentos de riscos do sistema como um todo. Retomando um argumento fundamental de Adam Smith, vale reconhecer que a acumulação entranha um mecanismo cumulativo do capital, que tem os dois aspectos de tornar necessário encontrar oportunidades para aplicações compatíveis com a posição do capital já acumulado; e de conseguir que as novas aplicações não estejam submetidas a riscos maiores que aqueles aderidos aos investimentos já iniciados.

Distinguiremos as condições ambiente de risco da progressão de riscos de cada empreendimento; e entenderemos que o perfil dos riscos muda quando as decisões sobre riscos saem do interior das empresas e se tornam parte das regras de participação em mercado. Por exemplo, as empresas passam a conviver com demandas de incluir trabalhadores que têm direitos mais caros que os da média e trabalhadores portadores de doenças transmissíveis. A sustentação da capacidade produtiva, isto é, a reprodução simples do sistema produtivo pressupõe a possibilidade de situações invariantes de riscos. Mas, o sistema jamais se reproduz sem alterações tecnológicas, pelo que na prática a reprodução sempre incorre em riscos, já que a abertura de novas oportunidades de aplicação de capital tende a não acompanhar a necessidade de aplicação. Este mecanismo, incorporado na formação do capital de alta tecnologia, faz-se cada vez mais presente nas economias mais avançadas. Observamos que a economia norte-americana conquistou a função principal de centro financeiro mantendo sua posição de principal mercado industrial, apesar de ter erodido sua capacidade de concorrer no mercado industrial e por seus custos mais elevados que os das economias industriais ascendentes. Essa é, justamente, a grande questão que nos impede de usar a velha divisão entre centro e periferia, quando se trata de que a China, a Rússia e a Índia progridem como economias industriais e com vantagens de custos sobre os EEUU, invertendo a posição de periferia exportadora de matérias primas para a de periferia usuária de matérias primas. A contradição de interesses entre situações de periferia surgem conflitos de interesse no campo da periferia, cuja substância é o controle, direto e indireto de trabalho. São conflitos que aparecem como interesses nacionais, mas cujo conteúdo de relações de classe não pode ser ignorado.

Por isso, para avançar nesta indagação será preciso estabelecer algumas hipóteses iniciais descritoras do modo atual da sociedade do capital avançado. São duas hipóteses que se combinam. A primeira delas é que os custos da reprodução do sistema, representados pelo grande consumo e pelas despesas militares, tornaram-se excessivos, frente as condições de remuneração do capital, nas economias do bloco hegemônico. A segunda hipótese, ligada à primeira, é que a conta de energia, em seu sentido mais amplo, compreendendo usos diretos e indiretos de energia, torna-se excessiva para o bloco hegemônico. De serem válidas estas hipóteses, por conseqüência, será preciso admitir que o desempenho energético da economia será decisivo na determinação de sua capacidade de crescer sem entrar em processos de bloqueio e crise.

A conta de energia sintetiza o desequilíbrio orgânico do sistema, cuja reprodução simples incorpora custos de substituições e ampliações da base produtiva, que comprometem a constituição do fundo de investimento. Manter a capacidade produtiva requer custos crescentes. A realização da reprodução simples acarreta custos progressivamente crescentes, que surgem do esforço necessário para garantir insumos que se tornam escassos e mais caros. A ultrapassagem tecnológica que aparece nos setores que mantêm mediante renovação, tais como a informática, a biotecnologia e a nanotecnologia, também acontece em setores ditos tradicionais, tais como a indústria de vestuário e a de alimentos. A rigor, a reprodução simples tal como é definida como referência de análise por Marx é uma situação hipotética, já que em caso algum o sistema se reproduz exatamente como era sem alteração alguma. Essa inércia da reprodução simples – que aparece na forma da teoria do acelerador de Harrod – torna-se uma força essencial na dinâmica do sistema, que será dinâmico até para se manter estático. Em síntese, a reprodução simples se torna mais incerta à medida que os sistemas se tornam mais complexos.


Fundo de investimento, garantia de demanda e controle de riscos

A noção de fundo de investimento impõe-se como um modo de explicar a disponibilização de recursos no sistema produtivo para atender àquelas necessidades da formação de capital identificada com a reprodução do sistema socioprodutivo. O fundo de investimento se constitui do valor que é extraído do consumo por conta do poder de decisão do capital sobre a composição dos usos da renda na sociedade em seu conjunto, isto é, reconhecendo que o capital tem o poder de afetar o consumo através de sua capacidade de comprimir a taxa de salário.

As diversas evidências históricas de que os movimentos de acumulação mais intensa coincidem com compressão da renda do trabalho desenham um ambiente social de produção em que a acumulação se realiza mediante movimentos de aumento da taxa de mais valia e não só de continuidade das condições de exploração. Objetivamente, o fundo de investimento descreve a capacidade das instituições controladoras de capital de se apropriarem de uma proporção do valor socialmente disponível superior à taxa média de lucro e poderem direcionar sua aplicação. No Brasil, os fundos de previdência introduziram uma modificação substancial no sistema financeiro ao darem ao Estado a capacidade de direcionar investimentos segundo suas prioridades e de influir na determinação da rentabilidade futura.

Alguma polêmica anterior sobre o capitalismo avançado ou tardio terá que ser recuperada. Trata-se das modificações estruturais do modo de funcionamento do capitalismo plenamente internacionalizado e monopolista (Mandel, 1985), da legitimidade institucional desse capitalismo que se nega a passar por cima da liberdade de mercado (Habermas, 1972) ou ainda, das alterações das relações de classe que acontecem no ambiente social do capitalismo avançado. O argumento de Mandel é a leitura marxista por excelência do funcionamento da sociedade econômica do capital, que oferece uma visão necessária da totalidade do processo, que registra as estratégias do capital do capital, mas como se ele fosse uma entidade desprendida de suas condições operacionais concretas. Perdeu-se aqui um dado fundamental do discurso marxiano, de que o capital é uma totalidade historicamente concreta, que carrega os conteúdos culturais em geral, ideológicos e de conhecimento que são gerados na experiência da produção. Retomaremos este debate num ponto levantado por Marx no cap.XXXVI do Livro III de O Capital, quando expõe sobre a acumulação de capital dinheiro, que requer condições de aplicação suficientes para retornar esse capital ao sistema produtivo. A acumulação de capital especulativo torna-se um risco incorporado ao sistema no que as decisões individuais de preservação do capital acumulado revertem em conflitos de interesse no plano internacional.

A conta de energia sintetiza o desequilíbrio orgânico do sistema, cuja reprodução simples incorpora custos de substituições e ampliações da base produtiva, que comprometem a constituição do fundo de investimento. A rigor, a reprodução simples, tal como é definida como referência de análise por Marx, é uma situação hipotética, já que em situação alguma o sistema se reproduz exatamente como era sem mudança alguma. No panorama da economia mundial desde o fim da segunda guerra mundial, a conta de energia passou a representar a rigidez do consumo total de energia, mesmo quando o componente direto de energia no produto final diminui.

Quem realiza e quem comanda esse consumo? A sociedade do capital avançado é, essencialmente, o ambiente operacional do oligopólio, que é uma forma de mercado avessa a risco. Temos que levar a suas últimas conseqüências os argumentos de Cournot para estabelecer que o oligopólio não leva a atitudes defensivas das empresas, senão que surge de uma estratégia defensiva das empresas que trocam mais lucros por menos riscos. A aversão a riscos torna-se um traço característico do sistema, onde as grandes empresas têm mais capacidade de transferirem riscos que as pequenas e onde os contribuintes individuais não têm praticamente como transferirem riscos ou evadirem tributos. Nessa forma de mercado a arquitetura da captação de dinheiro poupado para realização de dinheiro capital compreende três elementos articulados uns com os outros. O primeiro deles é o circuito de captação de dinheiro da massa de salários e lucros distribuídos, que entra no sistema bancário já comprometida com um determinado perfil de compras. O segundo deles é o circuito de operações acionado pelos bancos, que vai em busca de aplicações rentáveis e com riscos controlados , que supõe relações estabilizadas entre os bancos e as empresas produtivas, isto é, que os bancos são funcionais à estratégia financeira das empresas. O terceiro componente é o circuito de despesa acionado pelo governo, que atinge o sistema produtivo através do acelerador da oferta de materiais para responder à despesa pública.

O fundo de investimento é a magnitude de dinheiro capital que se incorpora efetivamente à capacidade produtiva instalada nos meios de produção disponíveis. Enquanto o sistema do capital se desloca sobre estruturas tecnológicas conhecidas em estruturas de mercado invariantes pode-se pensar porque o fundo de investimento seja suficiente e compatível para satisfazer as necessidades de investimento para a reprodução simples do capital em geral. Torna-se, portanto, necessário examinar a validade dessa premissa. O argumento que se torna dominante nas condições operacionais do capitalismo avançado é, precisamente, que essas condições deixam de se cumprir em períodos de renovação tecnológica intensa e em setores da indústria onde a permanência no mercado depende de movimentos de renovação tecnológica e organizacional que têm o efeito reverso de desvalorizar o capital aplicado além da reposição de valor trazida pelos investimentos novos. Nessas condições o fundo de investimento será insuficiente para garantir a reposição da totalidade do capital aplicado e o sistema e o sistema dependerá de uma garantia de demanda que será algo além das expectativas de mercado e que se busca concretizar em contratos de longa duração. Logicamente, as previsões das empresas têm que se basear em toda essa engenharia de contratos de produção e de compras, onde os cálculos de custos e lucros têm que ser filtrados por estimativas de riscos.

Nesse ponto entra o papel da demanda pública no capital dinheiro, que precisa reduzir riscos para se manter no mercado. E esta será, seguramente, uma das principais razões para a combinação de Estado e empresa em política internacional de venda de tecnologia, desde equipamento para irrigação a equipamento militar e a tecnologia militar.


O longo curto prazo

A crise veio mostrar que a economia transcorre inevitavelmente no tempo real e não no pseudo tempo do deslocamento de variáveis. No essencial, o curto prazo é um ambiente de tempo real em que se registram eventos de curta, média e longa duração em arranjos de tempo sensíveis a diferenças de ordenamento apoiadas em cada um desses horizontes. O curto prazo é um espaço de contemporaneidade que não se confunde com o espaço virtual de pseudo tempo da análise estática. A diferença entre a percepção de curto prazo e análise instantânea determina uma compreensão dos ciclos, com a qual se reconstrói a visão do cotidiano na economia. A análise estática cobre apenas situações de pseudo tempo e não está aparelhada para tratar com a complexidade do curto prazo.

Em princípio, o curto prazo é um ambiente em que os eventos acontecem em tempo infinitesimal, ou onde a influência do tempo é nula. Por isso, é uma situação fictícia de tempo, já que em fração de tempo acontecem eventos que foram iniciados antes. A variedade de escalas de tempo com que se pode medir a duração dos fenômenos resulta no fato concreto de que não há condições de tempo senão de intervalos de tempo que têm diferente densidade fenomênica. Realisticamente, a análise social tem que partir de hipóteses fundadas em condições de tempo significativo. Com isso, se atribui outra dimensão de tempo ao curto prazo, que se torna uma referência significativa na composição de um ambiente de prazos mais longos.

Sobre essa base será possível rever os significados do tempo no contexto dos processos da crise. Em economia se aplica o princípio de que a percepção do tempo é desigual e que os momentos cruciais se sentem como mais longos. Por várias razões, como procuramos mostrar, a crise econômica tem fundamentos econômicos, políticos e culturais, que se combinam segundo elementos previsíveis de desempenho do capital e elementos incontroláveis da natureza.

O curto prazo é uma realidade complexa que não pode ser refletida pela análise econômica do instantâneo. O que é atual ou contemporâneo em economia é uma composição de processos iniciados antes, que têm diferentes durações e uma diversidade de influências de uns sobre outros. Desde qualquer ponto momento de referência há um horizonte de visibilidade do processo econômico no espaço-tempo dessa composição de eventos, em que as condições de confiança decrescem, progressivamente, e em que a diminuição dos elementos de certeza coincide com a identificação de elementos de incerteza e de indeterminação que se mantêm ou se ampliam, A diferença entre a percepção de curto prazo e a análise instantânea determina uma compreensão dos ciclos, com a qual se reconstrói a visão do cotidiano na economia.

Em princípio, o curto prazo real não se confunde com o ambiente instantâneo da análise estática. O curto prazo tem durações definidas enquanto a análise estática é um ambiente em que os eventos acontecem em tempo infinitesimal, ou onde a influência do tempo é nula. Por isso, é uma situação fictícia de tempo, já que em fração de tempo acontecem eventos que foram iniciados antes. A variedade de escalas de tempo com que se pode medir a duração dos fenômenos resulta no fato concreto de que não há condições de tempo senão de intervalos de tempo que têm diferente densidade fenomênica. Realisticamente, a análise social tem que partir de hipóteses fundadas em condições de tempo significativo. Com isso, se atribui outra dimensão de tempo ao curto prazo, que se torna uma referência significativa na composição de um ambiente de prazos mais longos.

Sobre essa base será possível rever os significados do tempo no contexto dos processos da crise. Em economia se aplica o princípio de que a percepção do tempo é desigual e que os momentos cruciais se sentem como mais longos. Por várias razões, como procuramos mostrar, a crise econômica tem fundamentos econômicos, políticos e culturais, que se combinam segundo elementos previsíveis de desempenho do capital e elementos incontroláveis da natureza, segundo regras da própria imprevisibilidade. É o que acontece, por exemplo, com alterações de hidrometria no ambiente semi-árido, que podem ser externamente determinadas, como por El Niño, e que não podem ser descartadas unicamente como um dado da incerteza do ambiente semi-árido. A concentração de informações no tempo permite distinguir grosso modo situações diferenciadas de certeza, que, para fins de simplificação, denominamos de curto, médio e longo prazo. O curto prazo é o espaço de eventos que nas condições atuais do capital,onde os programas de produção são concebidos e realizados com a referência da atual capacidade de produção. O que vem a ser o médio prazo é o ambiente onde os programas de produção se realizam com substituição de técnicas e de formas de organização inerente à renovação tecnológica. A isto passou a somar-se o fato de que esse processo se realiza sobre quantidades crescentes de capital acumulado e com concentração da capacidade de decidir sobre os usos de capital. No conjunto, a percepção da renovação do sistema produtivo em horizontes móveis de tempo remete a conceber o sistema como constituído de componentes regidos por variados graus de incerteza, que se tornam mais influentes quando os movimentos de valorização e de desvalorização de capital - associados à renovação técnica – predominam sobre os elementos de continuidade do sistema.

A redução dos tempos de difusão de inovações técnicas, que se acelerou junto com a informatização da gestão do capital, fez com que o sistema produtivo se tornasse mais sensível aos fatores de instabilidade, com que o grande capital vem desempenhando um papel de auto-regulação, através do controle oligopolístico da renovação e da difusão de tecnologias, criando uma brecha de mercado entre a produção de inovações e a difusão. Como os graus de monopólio das diversas etapas do processo da tecnologia são diferentes e variam desigualmente, os impactos do sistema da tecnologia no processo dos investimentos tende a deslocá-lo na direção de maior instabilidade.

Este argumento terá que ser considerado como parte de um conjunto de tendências que convergem sobre o sistema do capital, fazendo com que seu modo de se reproduzir aumente sua sensibilidade à incerteza. Esta é a pista a ser seguida no desenho do novo perfil da crise no capitalismo central. Não há mistério em que o sistema do capital tem sido acionado por contratos de governo, onde a maior massa de demanda pública é, justamente, a do bloco hegemônico. Neles, a participação das despesas militares contamina de modo decisivo a tendência da despesa e coloca as inovações do setor militar na frente do sistema.

As despesas militares são um traço constante na evolução da sociedade do capital desde a ascensão do Império Britânico, mas se tornam preponderantes, em parte porque os meios da guerra se tornaram mais tecnificados e mais caros
[3] porque há um custo praticamente incontrolado da manutenção da máquina de guerra, que se confunde com os custos de sua atualização. Além disso, a despesa militar tornou-se irreversível como parte de um equilíbrio de poder que aparentemente não registra os insucessos do poder militar do capitalismo central[4].


A soma de todos os medos: a crise de confiança

A cara visível da crise financeira é a de uma crise de confiança que se alastra através de mecanismos de articulação da reprodução do capital financeiro com o sistema produtivo. Esse é o seu componente subjetivo. Por trás dessa máscara há desajustes e pressões concretas nas relações entre segmentos do capital que regulam o modo como se realizam os movimentos dos diversos detentores de capitais e que regulam o modo como se realiza o processo geral de acumulação. Nessa situação estão as diferenças entre os interesses dos pequenos poupadores, das empresas em expansão
[5] e dos grandes bancos. Os pequenos poupadores precisam de aplicações de baixo risco, as empresas em expansão precisam de dinheiro barato e os bancos lucram com crédito. Fatores tais como a demanda de dinheiro de países ascendentes, de empresas em expansão pressionadas por um mercado oligopolizado e despesas militares pressionam o mercado financeiro, onde a concorrência por dinheiro pressionam o mercado financeiro, onde a concorrência por dinheiro novo pressiona as taxas de juros. Surge, então, uma brecha no mercado imobiliário, quando a renda dos pequenos poupadores não é suficiente para pagar suas hipotecas. Há um efeito dominó na base do sistema, que simplesmente opera com taxas incompatíveis com as expectativas do mercado financeiro.

Não há justificativa para explicar simplificando, dada a complexidade dos mecanismos que realimentam o processo da crise. Mas é preciso seguir a pista da ligação entre o processo da crise como e enquanto ela é um corte brusco na oferta de dinheiro e como processo que seleciona o financiamento direto de atividades produtivas do financiamento da reprodução financeira do capital. A formação de novos núcleos de dívida, como nas vendas de novos imóveis, implica em um novo problema de transferir os novos custos para um sistema financeiro esgotado que já não poderá contar com o resgate do Estado. O fim da crise é o empobrecimento dos ricos e o aprofundamento da pobreza dos pobres. São dois processos diferentes interligados, o da demanda de capital por parte das empresas e o de extrair lucro de especulações sobre as expectativas de produção. Voltamos à observação anterior de que o capital financeiro não cria demanda.

O sistema financeiro se move acionado pela demanda de capital e seria um erro reduzi-la à demanda de habitação das pessoas. Ela simplesmente se converte em demanda de capital das empresas que operam a construção civil e é nesta forma que chega ao circuito do capital financeiro, passando a fazer parte de um fluxo geral de demanda de capital, onde converge com as necessidades das empresas que operam com expansão de negócios e com as demandas do setor de armamentos. A separação entre a esfera pública e a privada se dissolve por completo, pelas mesmas razões que sustentaram a construção do poder hegemônico, que foram a garantia pública do endividamento privado e a sustentação da despesa militar. A securitização da dívida, que marcou a retomada do poderio norte-americano no início da década de 1980, na realidade consagrou uma prática essencial ao sistema, que consiste na assunção do passivo privado pelo tesouro público que se torna o fator de realimentação da dinâmica do sistema do capital.

A reprodução do capital acumulado obrigou o sistema econômico a aceitar como necessários os custos da sustentação do endividamento privado, que se tornaria relativamente mais oneroso enquanto a economia do capitalismo central deixa de ser a que se expande ou cresce mais rápido e acumula dívida externa. Encontra-se uma contradição do sistema conduzido por oligopólios, que operam de modo defensivo. O capitalismo precisa expandir os horizontes de demanda com que opera, em seu interior ou nas economias ascendentes. Hoje as diferenças de escala e de condições operativas de mercado interno entre os EEUU e os países da Europa Ocidental fazem com que a economia norte-americana deva resolver problemas de seu crescimento próprio que não podem ser cobertos no mercado europeu, por mais que as economias européias possam injetar dinheiro no sistema norte-americano. Trata-se de um problema de demanda que tenderá a se agudizar no momento em que o estímulo da despesa militar desemboca em custos de difícil absorção. É uma nova forma de marginalização, que acontece na esfera dos países aliados do bloco dos mais ricos e que encontra reforço na perspectiva de esgotamento da capacidade de crescer das nações periféricas do mundo rico. Não surpreende que o potencial de desenvolvimento dos países europeus de pequeno porte diminua, assim como que as estratégias de recomposição e de crescimento dos Estados Unidos tenham se deslocado para suas relações com a China.

Em síntese, nestas condições o curto prazo deixa de ser o espaço definido por aplicações em curto prazo para ser o espaço de impacto imediato de tendências ajustadas definidas pelo modo de reprodução do capitalismo central. A confiança no mercado depende da capacidade de compreender como ele funciona. A distância que há hoje entre as causas mais profundas do ciclo e suas manifestações superficiais reduz a análise da atualidade às causas do curto prazo, impedindo-a de ver a engrenagem da relação entre a esfera econômica e a esfera política.


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[1] Maria da Conceição Tavares, Ciclo e crise 1998,pp.48.
[2] Denominamos de super urbanos aqueles grupos integrados em cidades que incorporaram formas de vida social que superam as formas de consumo coletivo mecanizado e padronizado e que se tornam diferenciais em relação com os grupos de rendas médias superiores. É uma designação que se coloca além da urbanização tecnológica e que contempla os modos culturais de cidades que incorporam ou modificam ou rejeitam formas de urbanismo identificadas com o moderno. Na urbanização do Brasil encontram-se segmentos super urbanos que convivem com segmentos suburbanos, que protagonizam uma urbanização negativa, de favelização e marginalização.
[3] Será revelador comparar os custos de equipar cada soldado de infantaria na segunda Guerra mundial, na Guerra do Vietnam e na Guerra do Iraque. Algumas cifras gentilmente cedidas por Carlos Costa Gomes (Ce. Ret.) são reveladoras. De uns 1.000 dólares por homem na segunda guerra mundial passou-se a uns 10.000 na guerra do Vietnam e a uns 100.000 na guerra do Iraque. O aumento exponencial do capital aplicado por militar engajado no conflito também compreende alterações na relação entre o número total dos militares e aqueles diretamente engajados em operações. Como a maior parte do investimento encontra-se em equipamento coletivo, desde helicópteros a veículos de transporte etc., infere-se que o custo médio por homem é muito superior ao que se infere dos equipamentos individuais.
[4] Cabe ver os argumentos apresentados por Donald Kennedy em seu Ascensão e queda das grandes potencias e de John Keegan em A historia da guerra. Na complexidade de fatores que decidem por um ambiente bélico crônico há importantes diferenças entre as políticas de tecnologia e as pesquisas que se fazem sobre a experiência de cada guerra e o mecanismo financeiro que alimenta as empresas que produzem equipamentos e munições.
[5] Cabe aqui lembrar o argumento de Wicksell para explicar o ciclo, que parte da demanda de capital das empresas e que descarta a visão subjetiva de Schumpeter acerca de papéis inovadores de capitalistas individuais.