segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O NORDESTE NA FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL

Um enquadramento do tema

O trabalho de Furtado em seu momento constituiu uma revolução no estudo da história econômica, especialmente no da história do Brasil, ao situar a origem da formação deste país no movimento geral do capital mercantil e mostrar como sua criação foi parte dos interesses que construíam os Estados nacionais europeus. Hoje pode ser reavaliado pela contribuição que representou e como indicativo das bases informativas e das condições ideológicas que prevaleceram na análise econômica naquele período. Precisamos vê-lo em seu valor de hoje como peça que interage na compreensão do país com sua complexidade. Para apreciar adequadamente esse trabalho no que ele tem de permanente, é preciso considerá-lo à luz da percepção histórica do processo social e das origens do processo de formação do Nordeste (Guimarães Neto, 1989), entendendo o significado das simplificações em que ele incorre.
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Inicialmente, trata-se de colocar a criação do Brasil no contexto do movimento geral de expansão do capital e da estruturação de um poder político que se descolava de seu fundamento feudal. Na formação do capital mercantil moderno as alianças que se costuravam entre comerciantes e armadores envolviam a sustentação econômica dos monarcas e a abertura de rotas comerciais no ocidente. Surgiram projetos de expansão oceânica, primeiro sobre a África, em que os portugueses tomaram a dianteira dos espanhóis, mas em que, para ambos, tratava-se de uma continuação da guerra contra os muçulmanos. O modo como esse projeto de poder atingia aos africanos era uma decorrência de uma postura belicosa que ficou ilustrada pelo ataque a Ceuta e no comportamento de Vasco da Gama. A questão contraditória que se coloca a seguir está na ambigüidade das relações da Coroa portuguesa com os judeus, já hostilizados na Espanha desde o século XIV[1]. Falta dizer – Furtado omite – que esse movimento pelo oeste foi alentado pelos efeitos da expansão castelhana na Espanha, que configurava um perigo constante para a soberania de Portugal. O mesmo determinante externo que levou Portugal a essa aliança exótica com a Inglaterra estimulou a construção de poder econômico, político e militar fora da península ibérica.
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O propósito de construir espaços de poder capazes de compensar as pretensões de unificar a península ibérica tornar-se-ia a principal referencia de política externa de Portugal. Desde o século XIV, com D. Diniz, a visão internacional de Portugal era bastante mais aberta que a da Espanha, onde a visão feudal castelhana e a mercantil catalã ainda não tenham definido um modelo interno de poder, e não tinham encontrado um substituto econômico para o poder muçulmano. A clareza do projeto político, econômico e militar português permitiu que se definissem funções para as regiões de que ele se constituía. A expansão foi um projeto de Estado. A diferença entre as colônias no Brasil e na África foi que estas se definiam como regiões produtivas enquanto aquelas foram apenas áreas de depredação. No período de expansão do Império o Nordeste, especialmente a Bahia, desempenhou uma função primordial na articulação do comércio e não só como região produtora, conquanto essa fosse uma função de suma importância[2]. No século XVII o Nordeste foi tão valioso que justificou que Portugal por ele pagasse aos holandeses (Mello, 2003), além de retirar da memória o papel da luta pelo controle da escravização na configuração do poder na colônia (Alencastro, 1999).
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No final do século XV Portugal já tinha reunidos todos os elementos necessários para o fundamento econômico de seu império e parece ser uma simplificação indevida reduzir esse projeto à produção de açúcar, por mais que essa mercadoria fosse o eixo de um sistema de negócios em expansão. O projeto imperial compreendia o domínio de uma variedade de produtos e de técnicas de produção, bem como o uso de novas formas de administração. O Nordeste foi uma grande região produtora de mercadorias e de serviços essenciais ao funcionamento do Império, tornando-se necessário entender que se tratou da região em seu conjunto, com a exportação do extrativismo e com o conjunto dos produtos e serviços e não só a produção de açúcar, que desempenhou esse papel. O extrativismo gerou importantes exportações de madeiras de lei e de fibras, além do óleo de baleia e da contribuição ao funcionamento da navegação oceânica. A identificação desse conjunto de formas econômicas com tradições comuns criadas através de movimentos próprios de expansão territorial deu ao Nordeste uma personalidade regional anterior à de outras partes do país. Esse fundamento histórico constitui uma referência que emerge da literatura regional, mas que não foi cabalmente explorado pela história econômica.
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A pluralidade inicial

A obra de Celso Furtado contribuiu poderosamente para renovar uma polêmica sobre a identidade do Nordeste, que foi alimentada por diferenças na região; e por visões externas, geralmente simplificadoras e tendentes a desvalorizar o papel da região na formação do país, especialmente no século XX. Que ou quem seria o Nordeste? Porque considerá-lo uma região carente se foi a região mais rica do país durante mais de duzentos anos? Porque não investigar as causas sociais e políticas do atraso? Desde que o governo brasileiro descobriu a seca encontrou um argumento poderoso para desentender-se dos problemas sociais e políticos herdados do colonialismo e da escravidão. A representação do sistema de poder formado pela produção canavieira ou a estrutura de poder baseada na grande propriedade rural? Quanto é possível identificar a grande propriedade com a produção canavieira? A grande propriedade expandiu-se com a produção da pecuária e sobreviveu, como forma de poder, à decadência da produção açucareira. Uma hipótese colateral a ser examinada é que o Nordeste perdeu funções por não ter sido capaz de se atualizar como província mineira no momento em que a mineração emergia em Minas Gerais e sustentava o proveitoso contrabando da região do Rio da Prata.
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A política de D. João VI operou no sentido de fragilizar a posição do Nordeste na estrutura do poder no país, consagrando uma tendência negativa da economia da região, contribuindo para que as elites nordestinas assumissem posições de contestação ao sistema de poder que se implantava com o autoritarismo dos Bragança. O papel das elites criadas no ambiente da economia mercantil no Nordeste veio a ser decisivo na constituição de grupos de poder, do mesmo modo como a renovação de elites subsidiadas foi fundamental na arquitetura do poder no período de autoritarismo de 64 a 84 (Chilcote, 1992). Frente ao argumento de circulação das elites, cabe considerar que no Nordeste tem havido pouca mobilidade, mesmo em situações em que as velhas elites perderam poder[3].
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A Formação Econômica do Brasil marcou um estilo de análise que foi precursor de algumas das teses mais importantes da historiografia latino-americana, repetida nos anos subseqüentes por Aldo Ferrer numa análise da economia argentina e por Horacio de la Peña em estudo da economia mexicana. Reproduzir a análise de Furtado tornou-se uma referência nos estudos latino-americanos. Uma análise histórica focalizada em grandes movimentos que contracenou com a História Econômica do Brasil de Caio Prado Junior, ao qual deve mais que reconhece. É um trabalho demarcatório de uma nova etapa de análise histórica, a ser devidamente reconhecida. Mas, assim como preencheu espaços deixou outros em branco. Passou por alto diversos elementos já conhecidos sobre essa parte do Brasil, cuja ausência contribuiria adiante para que se formassem mitos simplificadores, tributários de uma ideologia regional cortada ao feitio do bloco regional de poder.
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Outrossim, uma questão fundamental a ser enfrentada é a ligação entre o passado e o presente. Essa continuidade tem um papel fundamental diante de um quadro de recorrência de controle político da economia, de permanência de grupos incompatíveis com mobilidade social e com a superação do autoritarismo pré-industrial sustentado no controle dos recursos naturais. É inevitável ponderar como o fim do autoritarismo militar cedeu lugar ao retorno de políticos nordestinos anteriores àquele período – e que dele se aproveitaram – que se articularam com novos grupos econômicos cevados em contratos com os governos militares e robustecidos por vantagens monopolísticas no mercado interno. As obras públicas – principalmente barragens e estradas – foram os instrumentos desse enriquecimento seletivo, que foi complementado com distritos de irrigação e com crédito preferencial (Chilcote, 1992; Silva Filho, 2004). As obras públicas funcionaram como um sistema seletivo de valorização de terras, curiosamente favorecendo os grandes proprietários. O ambiente do autoritarismo favoreceu um movimento original de atualização de sistemas de poder que já se encontravam desgastados pelo declínio da indústria de bens de consumo e pela incapacidade da agricultura exportadora tradicional, organizada em torno do açúcar, do fumo e do algodão, para se adaptar às mudanças do mercado mundial. Criou-se um mito de que a economia do Nordeste foi subordinada pela expansão da economia de São Paulo, sem tomar em conta que o desgaste da economia nordestina começou com a especulação financeira causada pela política de Rui Barbosa e que foi objeto de estratégias de penetração de grandes empresas européias envolvidas com a comercialização do cacau e com a do algodão.
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No ambiente econômico de após a segunda guerra mundial tornou-se imperativo explicar os processos de atualização do bloco de poder no Nordeste, como parte essencial desse processo na escala nacional. A funcionalidade do sistema de poder do Nordeste no país em seu conjunto ficou evidenciada na participação da região no legislativo e no executivo federais, acima do que se poderia inferir da economia da região. Em seu tempo, a oposição dos governadores do Nordeste à SUDENE – até que puderam controlá-la politicamente – foi uma indicação inequívoca dessa influência. O próprio Celso Furtado foi o principal alvo desse movimento reacionário que o identificou como protagonista de um estilo de mudança que quebraria o sistema de poder prevalecente. Com outras cores, Furtado teria um papel semelhante ao de Francisco Julião e das Ligas Camponesas.
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No final do período da ditadura a SUDENE tentou retomar sua atividade precípua de planejamento, tentando recuperar a lógica interna do desenvolvimento. Mas, desde o governo Collor, o governo federal entrou completamente no jogo da oligarquia nordestina, perdoando dívidas de usineiros e garantindo espaços na estrutura federal de poder para alguns dos mais claros representantes da aliança da velha estrutura de poder com a atualização do bloco de poder nordestino, facilitando a reconstrução de grupos poderosos na produção canavieira oligopolizada. Nas condições que se desenvolveram desde o golpe de Estado de 1964, tornou-se impossível construir uma compreensão historicamente consistente do Nordeste sem referências diretas aos grupos políticos regionais que se consolidaram desde então.
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O sistema político nordestino tornou-se o grande aval dos componentes mais retrógrados da política econômica nacional e viabilizador da defesa intransigente de interesses pessoais. As instituições criadas para impulsionar o desenvolvimento da região, como o Banco do Nordeste e a SUDENE ficaram sob controle dos principais grupos de interesse da região ou foram destruídos, como foi o caso da SUDENE, sob pretexto de uma corrupção realmente realizada em outras regiões. Em seus últimos anos Celso Furtado deu declarações que evidenciaram sua completa consciência desse processo
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A Formação econômica do Brasil (Cultura, 1959) teve a capacidade de demarcar o debate sobre o Nordeste, colocando alguns argumentos decisivos relativos à relação entre um comércio internacionalmente organizado e uma agricultura localmente estabelecida, mas introduzindo algumas simplificações que dificultaram que se percebesse a complexidade social dessa parte do país. Teria que ligar a questão agrária à modernização do capital (Rangel, 1956). O esforço de armar um modelo explicativo da transformação do país deu resultados altamente positivos para explicar a mecânica da região Nordeste, mas teve o efeito contrário de desconsiderar a progressão da complexidade social e técnica da região. O primeiro pressuposto dessa análise, que é de fazer tabula rasa de tudo que havia por aqui antes da invasão ibérica é mortal, justamente porque esse antecedente foi essencial por contraste na determinação do modelo colonial e veio a formar o contraponto do capital no campo. O Nordeste, tal como visto pela Formação é uma presença poderosa que perfilha um nativismo exclusivista, capaz de se colocar como antípoda do Brasil criado por bandeirantes e imigrantes, capaz de ser portador do estandarte ideológico de Gilberto Freyre (2001), que oscila entre uma origem flamenga e uma relação alternativa com o mundo lusitano. Nessa perspectiva, o projeto brasileiro de Portugal gira em torno do açúcar e se reduz às determinações da produção açucareira. Justamente, nesse ponto se precisa de um campo de visão mais amplo, de uma visão em maior profundidade histórica, capaz de situar o Nordeste no processo da formação do império português.
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Não se pode pensar a formação do Brasil por separado da formação do Império Português e sem reconhecer que o projeto português de poder foi internacional desde seu início e representou um avanço notável quando comparado com o fundamento ideológico dos projetos de poder da Espanha, da França e da Inglaterra. O projeto de poder de Portugal se definiu no século XIV e se consolidou no século XV, combinando um conjunto de mercadorias realizado mediante um sistema de dominação que se organizou com dominação direta e indireta de trabalho, em que a variedade dos dominados era um dado da forma imperial de poder que deveria ser aceito. O Nordeste foi o principal campo de experimentação desse sistema complexo e a formação do sistema produtivo compreende o arranjo de poder que liga a produção canavieira a um determinado sistema escravista, que se completa com as mercadorias que são trocadas por escravos e com as soluções dos problemas de manutenção da população dos excluídos. Precisa-se, portanto, de uma compreensão do Nordeste capaz de dar conta dessa complexidade desse ambiente construído sobre contradições e conflitos. O Nordeste surge como uma região definida por um processo de poder baseado no controle da terra e na capacidade de decidir quem mora na colônia e quem participa dos processos de produção.
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A colonização cria uma sociedade organizada segundo diferenças sociais radicais do mundo do escravismo, que limitam as possibilidades operacionais do sistema produtivo. O sistema de poder estabelece referências que se desdobram, simultaneamente, no sistema produtivo e no sistema institucional. Nesse sistema de poder o controle do poder judiciário foi mais importante que o controle direto de tropas[4]. O modelo regional se define no plano econômico e no político, combinando a produção açucareira com o controle patrimonial. A prevalência do sistema de poder torna-se clara desde a resistência a corsários e invasores no século XVII até a capacidade de conduzir a substituição da produção manual pela industrializada. Esta complexidade já estaria registrada nos relatórios e discursos do governador Calmon de Góis na década de 1920 e antes ainda, nas Cartas de 1807 [5].
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O papel da organização internacional do comércio na economia do açúcar já tinha sido descrita por Cairú no inicio do século XIX. A Formação ignorou uma linhagem de análise que vem desde o registro da decadência do sistema colonial aos impasses do velho setor exportador no período do Império, quando a comercialização de açúcar e derivados estava controlada por capitais ingleses que tinham seus próprios interesses organizados nas Antilhas. A perda de posição da economia exportadora sob controle da oligarquia nordestina levou a uma nova configuração da articulação da esfera política com a esfera econômica que permitiu converter o controle local da terra em capital político nacional.
É esse controle da terra – realmente controle de terra e água – que faz a ligação entre formas arcaicas e formas modernas de produção e que representa a continuidade do sistema de poder subjacente no sistema produtivo. Furtado ainda nos fala de abundância de terras no Nordeste, que nesta região é um conceito inseparável da perspectiva de dominação. As terras pareceram ser abundantes porque seus moradores anteriores não contavam. A perspectiva da posse da terra é dada pela economia internacional, que ele atribui à produção canavieira.
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Ao longo do tempo a formação do sistema produtivo representou uma apropriação de espaço que substituiu o território do semi-nomadismo indígena por diversas formas sedentárias, organizadas como os territórios da produção açucareira, da fumageira, da algodoeira, articulados pela capacidade de apropriação de espaço do comércio internacional, do macrorregional e do local. O Nordeste surge como região econômica e política, formadora de uma regionalidade americana do capital mercantil, capaz de gerar identidades culturais poderosas, capazes de se fazerem representar no movimento geral da formação econômica social e política do país.
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Seguindo estes elementos numa linha de raciocínio que não choca com a proposta de Celso Furtado, pode-se pensar que o Nordeste da primeira produção açucareira, de 1500 a 1750, foi a região líder de um sistema exportador de porte nacional, em cujo âmbito perdeu espaço para as regiões produtoras das Caraíbas e do norte do Rio de Janeiro. O declínio da produção açucareira no século XVIII refletiu um desinteresse em renovação tecnológica característico da produção escravista que caracterizou o Nordeste em suas diversas atividades. Observe-se que o relativo a concorrência interna foi completamente ignorado pela Formação, que, desse modo, reduz a importância do acontecido no decorrer do período do Império. apesar de haver acordo sobre a importância do desenvolvimento da economia do vale do Rio São Francisco. A questão da concorrência com o vale do Rio Paraíba ficou em aberto na historiografia do Nordeste.
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Os movimentos contraditórios da formação econômica do Brasil
O detalhamento do modelo de interpretação do processo brasileiro leva Furtado a se concentrar nos resultados finais da produção, em termos de formação de capital, desdenhando ou simplesmente passando por alto todo o relativo à organização social da produção. Não se deveria considerar o significado econômico das lutas políticas do século XIX? Cabe esclarecer quanto se trata de modernização e quanto de industrialização. Se reconhecermos que a industrialização e a formação de bancos comerciais surgiram da aplicação de capitais formados no tráfico de escravos e que os usineiros de açúcar representam um dos principais fatores de conservadorismo no Nordeste, essa dimensão econômica e política torna-se indispensável.
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A industrialização aparece como o principal ingrediente da constituição da economia moderna, mas sem seu componente de luta de classe e sem seu desdobramento em desenvolvimento do capital financeiro. Numa revisão dos fundamentos conceituais da Formação sente-se a falta de uma análise da estrutura de classes no Nordeste, que só apareceria parcialmente com trabalhos de seus colaboradores (Oliveira, 1967) e de alguns pesquisadores estrangeiros (Chilcote, 1991). A configuração da economia provém de relações de poder no reino de Portugal. No final do século XV Portugal tinha reunidos todos os elementos para o fundamento econômico de seu império e parece ser uma simplificação indevida reduzir esse projeto à produção de açúcar, por mais que essa mercadoria fosse o eixo de um sistema de negócios. No modelo português foi fundamental o aproveitamento sistemático do leque de mercadorias introduzidas pelos muçulmanos na península ibérica, onde foi decisivo o papel das feitorias na África. Furtado, portanto, acerta quando focaliza na internacionalidade do modelo, apesar de cair em reducionismo quando formula sua interpretação da estruturação do sistema produtivo no Brasil. Nesse contexto, a configuração do Brasil como região econômica do Império dependia de um circuito de atividades, em cujo âmbito a produção de mercadorias e a solução dos problemas de subsistência se realizavam em combinações direcionadas para a participação no comércio internacional. A produção de mandioca, que era realizada pelos índios, passou a fazer parte da base alimentar que sustentava a atividade exportadora. Outros produtos básicos, tais como milho e feijão, que foram trazidos pelos colonos, vieram a constituir uma dieta básica completada com caça e com a difusão das práticas americanas de preparação de carne seca[6].
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O desdobramento inevitável dessa abordagem consistiria em ver como o desenvolvimento da economia colonial resultaria em modificações do sistema de poder do capital mercantil. Para o Nordeste, a crise do sistema colonial apareceria na forma de uma perda de posição no sistema do Império, quando a geração de mercadorias exportáveis passava a um segundo plano. O Nordeste do açúcar começava a declinar antes que o sistema escravista se esgotasse. O modelo de análise de Furtado torna-se menos adequado para acompanhar essa transformação e ele separa a Bahia do Nordeste, refletindo um sentimento comum a baianos e pernambucanos, cuja origem vem desde disputas de poder no contexto colonial, adiante reiteradas pela transferência das terras do Além São Francisco à Bahia pelo Império depois da malograda revolução de 1817. Essa separação revelou-se contraproducente no relativo à SUDENE, onde se tornou evidente a necessidade de chegar a um projeto de modernização socialmente desejável para a região em seu conjunto, onde se reconhecessem suas diferenças.
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A Formação é uma análise do movimento geral da formação do sistema socioprodutivo, que passa por alto o papel dos conflitos sociais na construção do sistema colonial e em seu declínio. No entanto, esses conflitos de interesse foram essenciais e devem ser examinados como parte integrante do projeto de poder representado pela formação do sistema colonial. Não só pela importância histórica das revoluções do Nordeste no século XIX como pelos conflitos sociais, desde Palmares à revolta dos Malês e a Canudos. É uma omissão que teria que ser reavaliada, considerando-se que o foco da análise dos movimentos das exportações levaria, por oposição, a considerar menos importante tudo relativo a produção para uso interno da colônia. Surge daí a necessidade de substituir as análises setoriais convencionais por um tratamento totalizador da formação de capital, onde os setores são simplesmente campos interdependentes de atuação do capital e onde o essencial é distinguir as transformações na composição do capital e seus desdobramentos técnicos. Essa passagem entre a análise setorial e a análise da totalidade do capital não estava disponível ao esquema teórico manejado por Furtado.
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A industrialização e o Nordeste
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A análise de Furtado do desenvolvimento da economia brasileira está marcada por sua posição frente a indústria. A indústria surge como uma mutação do capital que se separa das manufaturas tradicionais na região [7] e que substitui produção artesanal. No relativo ao Nordeste, constitui uma simplificação surpreendente, tanto por ignorar o pioneirismo da indústria nordestina no Brasil como por não enfrentar o relativo às transformações sociais induzidas pela formação de um operariado em diversas capitais do Nordeste (Castellucci, 2004). A falta de uma análise de relações de classe nesse caso é decisiva, porque impede que se vejam os efeitos da atualização do bloco de poder no Nordeste na própria oposição que se formou à SUDENE. Furtado vem de uma compreensão keynesiana do funcionamento da economia. Nessa perspectiva, viu a indústria como um setor da produção constituído de um conjunto de fábricas, que se forma por separado da agricultura e em contraste com ela e não como um campo das relações inter-setoriais que se identifica por suas inter-relações no sistema produtivo em seu conjunto. Nessa perspectiva, a indústria seria um conjunto de fábricas e o comportamento da indústria seria o desempenho das fábricas tomado em forma agregada. A teoria do desenvolvimento de origem keynesiana não distinguia entre a análise consolidada das fábricas e a análise das empresas, pelo que não via a indústria como um reflexo do movimento geral do capital onde as opções industriais e as dos demais setores são interdependentes.
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Esse viés significa que se focaliza no ambiente técnico da indústria e não no contexto histórico e econômico da reprodução do capital. Tal como na classificação oficial das estatísticas da indústria, aceita-se como indústria uma série de fábricas que se distinguem umas das outras apenas por capital contábil, número de operários etc.. Não se vêm essas fábricas como integrantes de empresas, senão como eventos que podem ser julgados isoladamente, tal como por critérios de relação custos/benefícios. Desse modo, é possível pensar que a indústria poderia ser um campo dócil perante iniciativas públicas de promoção de investimentos, que foi a presunção que sustentou as políticas de distritos industriais. Isso exclui a lógica da industrialização da produção canavieira, que está indissoluvelmente ligada à primeira industrialização do Nordeste na segunda metade do século XIX e que hoje protagoniza uma notável modernização. Exclui, também, o fato de que a industrialização se realiza mediante a entrada de novas linhas de produção ligadas a novas soluções de organização social da produção.
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Por isso, o tratamento da industrialização é o principal ponto de conflito entre a análise histórica propriamente dita e a análise histórica da política econômica. Situado na perspectiva moderna do após guerra, A industrialização foi identificada pela teoria do desenvolvimento como o componente essencial da superação do subdesenvolvimento. Mas também foi objeto de uma simplificação em supor que seria alcançada mediante decisões de governo, independentes da lógica de reprodução do capital. Furtado adere à visão simplificadora da formação da indústria no Brasil que toma 1930 como ponto de partida e ignora os movimentos do capital que se encaminharam para a indústria de transformação desde meados do século XIX. Aparentemente Furtado ignorou a complexidade da primeira etapa de industrialização, que fez, inclusive, com que o planejamento estadual da década de 1950 e o Banco do Nordeste se ocupassem tanto em recuperação de uma indústria de bens de consumo duráveis em operação há décadas[8] . É a diferença entre as tendências do capital à indústria e as opções dos governos de tomar iniciativas para industrializar a economia. No entanto, se colocamos os problemas de industrialização no contexto da economia internacional, torna-se evidente que se trata de quadros de opções dentro das quais se movem os capitais integrados nas economias periféricas.
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Pensar em termos de grande capital e de controle financeiro da produção leva a uma outra leitura do processo do Nordeste, onde a reprodução do poder político é parte essencial da constituição do poder econômico. Esse é o modo pelo qual podem ser explicados os movimentos de atualização do bloco de poder e de construção de novos pactos de interesse entre os consórcios de grandes capitais operando na região e a estruturação do poder político.
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Numa visão em retrospectiva da industrialização e das políticas industriais no Nordeste concebidas na década de 1950, surge que há duas grandes vertentes de política, em que uma se remete a proteger o parque industrial existente, portanto, que são as de manter e atualizar estruturas produtivas já existentes, em sua maioria de bens de consumo, e de criar novos estilos de produção industrial e industrializada, que surgem como negação das formas de acumulação, que foram empreendidas no início do século XX. A proposta de industrialização da SUDENE pautou-se ainda pelo velho estilo de atrair indústrias e de apoiar projetos novos de velhas empresas regionais, tornando-se uma contradição com os delineamentos globais de política regional, que clamavam por uma reestruturação da economia regional em seu conjunto. A falta de uma articulação significativa entre a política industrial e as políticas de desenvolvimento rural seria o principal ponto fraco da política de desenvolvimento da SUDENE, que jamais reconheceu legitimidade dos movimentos sociais de reivindicação rural. Contra toda expectativa, a SUDENE dedicou-se a uma política industrial baseada em fomento de projetos individuais, que só foi revisada no governo Figueiredo, quando houve tentativas por parte do Ministério de Planejamento de focalizar em complexos industriais, avançando numa visão sistêmica do problema. A única grande exceção de fato da velha política industrial foi o complexo industrial de Camaçari, que reeditava, como proposta técnica, a primeira versão do Centro Industrial de Aratu. A visão dicotômica da indústria como antípoda da agricultura representou uma política de favoritismo de velhas empresas regionais, de que a SUDENE não conseguiu se separar.
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* Doutor e Docente Livre pela Ufba. Diretor geral do Instituto de Pesquisas Sociais.
[1] Em 1357 Fernando III de Castela invadiu a Andaluzia com o lema Um povo, uma língua, uma religião, duzentos anos antes que se estabelecesse a Inquisição.
[2] Ver o excelente estudo de José Roberto Amaral Lapa sobre A Bahia na carreira da Índia, que descreve essa função da Bahia no sistema comercial mundializado criado por Portugal.
[3] A continuidade do bloco de poder na política nordestina favoreceu o aparecimento de novos ricos, quase sempre beneficiados por vantagens de mercado e contratos com o governo, mas esse movimento não contradiz senão ajuda a explicar a atualização do sistema de poder. Os mecanismos de reprodução política do poder econômico certamente se aperfeiçoaram durante o regime militar, mas ganharam força na “nova” República, mediante mecanismos de aliança regional que se tornaram funcionais ao desenho político nacional. O fundamento dessa nova forma de poder vem sendo a articulação de uma aliança urbana com grandes empresas internacionalizadas com o controle político das bases municipais do sistema. As análises superficiais da mídia têm confundido esta composição política com coronelismo, que é uma modalidade rural de poder há muito superada.
[4] Cabe ver o trabalho de Stuart Schwartz sobre o papel do controle da burocracia na formação do sistema de poder político no Brasil colonial.
[5] Ver Cartas econômico-políticas sobre a agricultura e comércio da Bahia, Salvador, Fieb, 2004.
[6] O termo charque consagrado no Brasil é quéchua, do altiplano andino, e significa carne seca de llama. A origem espanhola na difusão do termo charque é indiscutível e refere à relação indireta com o altiplano andino através da Argentina. O nome ibérico desse produto é o espanhol tasajo , que nunca foi usado no Brasil. A expressão cecina , de significado mais amplo, ficou restrita a pequenas áreas da América do Sul e tornou-se mais difundida na Mesoamérica. O uso de carne dessecada foi uma solução para as deficiências de distribuição de alimentos característica das colônias americanas, no ambiente que consagrou o consumo de bacalhau seco importado por não organizar a pesca para suprir a demanda de alimentos.
[7] Em diversos pontos do Nordeste, desde Juazeiro do Norte a Campina Grande, Garanhuns, Feira de Santana, Itabaiana, Propriá, surgiu uma produção coletiva que se situava entre grande artesanato e manufatura, que foi capaz de produzir mercadorias tecnicamente sofisticadas, como armas de fogo e relógios, e calçados e roupas em grande quantidade, que prosperou entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX. Essas atividades de pequenos capitais, que representaram uma importante fonte de emprego urbano, foram olimpicamente ignoradas pelos programas públicos de fomento da indústria. Pode-se afirmar que o financiamento da indústria no Nordeste sempre se direcionou aos grandes capitais locais.
[8] Essa situação ficara claramente demonstrada no planejamento econômico estadual, que já era praticado na Bahia, em Sergipe e em Pernambuco. Os documentos da CPE (Bahia), do CONDESE (Sergipe) e do CONDEPE (Pernambuco) dão testemunho de uma tentativa de política industrial que encontrou eco na atividade da Carteira Industrial do Banco do Nordeste durante a década de 1950 e que não poderia ser ignorada pelo planejamento industrial da SUDENE. Entretanto, já o planejamento estadual identificava os objetivos de uma industrialização seletiva, que foram abandonados depois do golpe de Estado de 1964. Prevaleceu a política de atração indiscriminada de indústrias, que serviu para que empresas que estavam em dificuldades no sudeste se acolhessem às vantagens do Nordeste.Desde então, tanto os estados do Nordeste como os órgãos federais na região passaram a aprovar projetos apenas por sua rentabilidade direta. O Banco do Nordeste deixou de ser um banco de desenvolvimento para limitar-se a funções de apoio a todo tipo de empreendimentos rentáveis, com notável concentração em pequeno número de usuários. A crítica desse modelo de fomento seguiria no sentido oposto ao do governo federal, que passou a realizar políticas assistencialistas na região em geral desde o início da “nova” República.
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este artigo foi publicado no livro "Celso Furtado e a Formação Econômica do Brasil" pela Ordem dos Economistas do Brasil

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