terça-feira, 2 de junho de 2009

ARTIGO

A ECONOMIA DA AMÉRICA ANTERIOR À INVASÃO EUROPÉIA


Puesto que ya no existe vuestro gran poder ni vuestra estirpe, y tampoco merecéis misericordia, será rebajada la condición de vuestra sangre. Popol Vuh (livro maia tradicional)


Os fundamentos da economia americana

A economia da América anterior às invasões européias divide-se, nitidamente, em sociedades teocráticas e militares desenvolvidas e em sociedades tribais pouco complexas. Entre umas e outras há uma variedade de situações intermediárias, que se distribuem irregularmente no tempo, que, entretanto, não contradizem essas referências básicas. Concomitantemente, todas essas sociedades dividem-se em sociedades que foram capazes de gerar uma urbanização significativa e sociedades que não ultrapassaram a forma dos aldeamentos. Por isso, na organização das sociedades americanas há uma questão fundamental relativa a densidade e localização do povoamento. Por extensão, há três aspectos fundamentais da história econômica americana, que são, os sistemas agrários, a engenharia megalítica e a urbanização.

Cada um deles deve ser analisado por separado e em conjunto com os demais, para que se chegue a identificar a adaptação ao meio físico e a capacidade de criar mecanismos alternativos para o povoamento, que permitissem contornar dificuldades naturais mais importantes. Observa-se que todas as principais sociedades americanas mostraram-se capazes de complementar ou corrigir condições naturais para o povoamento. A adaptação ao meio físico e a capacidade de sustentar populações numerosas dependeu da formação dos sistemas agrários, que, entretanto, jamais aconteceu por separado da formação de sistemas institucionais capazes de realizar a mobilização de trabalho necessária para uma lavoura de grandes proporções. Tal mobilização de trabalho passou a funcionar como base dos sistemas militares e de seu uso não bélico, nas construções megalíticas, que tiveram um papel econômico fundamental, desde a produção de solo cultivável, às obras hidráulicas e finalmente, à urbanização.

A capacidade de captar e direcionar trabalho é um aspecto essencial da formação das sociedades americanas mais avançadas, nas quais há um papel econômico e político das estruturas religiosas a ser avaliado. O significado político do poder religioso foi essencial na determinação de relações de produção que visavam obter um excedente físico coletivo de produção, aumentando a capacidade de produção, mesmo quando não aumentando a capacidade de acumular riqueza.

O cone de luz, o impreciso e o tergiversado

Cada vez mais, o estudo dos problemas da história recente exige elementos de esclarecimento da história antiga. As diferenças de profundidade de história antiga, bem como a possibilidade de tratar a história como um movimento contínuo, são referências da perspectiva européia da história, apenas quebradas em algum momento brilhante pela antropoarqueologia. Jean-Pierre Vernant (1984) é responsável de um desses achados interpretativos, quando mostra o papel decisivo de uma confusão entre o fim de um período de decadência e um período de expansão, que se tornou uma grande tergiversação da história do Mediterrâneo oriental. O olhar americano da história não pode ficar preso às determinações da visão européia, nem pode pretender ser uma continuidade privilegiada da experiência européia, que, por isso, descarta ou minimiza a importância da América anterior à invasão européia e das influências não européias na forma’’cão das Américas.

Além disso, a pluralidade de antecedentes e de condições das Américas impõe reconhecer que há diversos olhares americanos, e que há dois níveis de pluralidade americana, que são, justamente, o da pluralidade do mundo americano anterior à invasão européia e a do mundo americano criado pelas sucessivas invasões européias. A relação entre as pluralidades e as identidades desloca-se ao longo do tempo, muda de feição, segundo muda a composição dos integrantes. A visão que prevalece é aquela formada sobre uma imigração vitoriosa nos séculos XVI e XVII, mas é preciso levar em conta que, desde então, há outras visões, criadas por outras imigrações numerosas, que tendem a ter um espaço cada vez maior. Em algum momento ganharão fôlego visões italiana e oriental da América, do mesmo modo como surge uma visão negra e como o mundo saxão é penetrado pela visão hispânica. Um dos fundamentos objetivos do racismo americano, especialmente do norte-americano, é a defesa de uma visão minoritária que pretende ser majoritária e que, por isso, converte-se em bloqueio do processo social em seu conjunto.

A América anterior a 1492 foi formada mediante processos diversos, como aqueles ao norte da Mesoamérica, os da Mesoamérica, aos Andinos, os das Antilhas e os do Escudo Atlântico, e passou a dar lugar a uma América Espanhola, uma América Portuguesa, uma América Saxã e outra Francesa e outra Holandesa. São diferentes condições sociopolíticas e etnoculturais, em que a participação africana passou por diferentes condições de inserção e onde, finalmente, as migrações recentes – posteriores à Revolução Francesa – também tomaram diferentes feições.
A questão é que o aprofundamento e o alargamento da antigüidade dão novo sentido ao que se sabe; e o campo do conhecido se revela como um cone de luz, cujos limites mostram o perfil da imprecisão do conhecimento. Fundamental de nossa época é ter-se percebido que esse cone de luz se desloca; e que a leitura do campo iluminado depende da síntese cultural com que se lê. É a visão englobante de que fala Karl Jaspers (1956). Mas que, além disso, tem um conteúdo histórico cambiante, que sempre mostra novos ângulos do passado. A cada momento, é preciso fazer uma síntese de experiências que se abrem mais, tal como acontece quando se sobem montanhas e se descobrem novas formas dos vales. Por exemplo, as migrações dos ameríndios no Brasil podem ser completamente separadas dos movimentos migratórios dos povos andinos, ou têm alguma relação com eles? Qual o significado da comunicação entre civilizações peruanas e mesoamericanas que já se tem como certa? Qual a continuidade entre as civilizações mais antigas e as mais recentes da área andina?

No relativo à América mais que a outras partes do mundo, essa recondução da antigüidade é necessária, porque sua real importância foi, quase sempre, menoscabada. A América reconhecida é a produzida pela visão européia, submetida a sucessivas influências, ibérica, francesa, inglesa e norte-americana. As demais visões - submergidas nas anteriores - como a islâmica e a judaica - ainda não foram desvinculadas das hegemônicas. Não há uma visão negra da América por razões óbvias. Mas tampouco há uma visão italiana ou russa, ou mesmo japonesa. A grande lacuna na verdade é uma visão americana da América em seu conjunto, que se construa sobre a objetividade do conhecimento das experiências que constituem o passado americano.

A simples enunciação desse problema evidencia a necessidade de romper com os limites auto impostos, de querer explicar a formação americana com os elementos organizados desde o início da colônia. Tal simplificação significa ignorar a complexidade do componente americano, ou supor que ele foi apenas passivo frente à pressão externa que se supõe ter sido sempre européia. Mas, para evitar essa simplificação, é preciso identificar referências próprias das formações sociais americanas; e tratar com seus problemas fundamentais de sobrevivência. A história dos sistemas políticos trata com resultados de processos sociais, enquanto a história da luta pela sobrevivência vai ao fundamento da formação das comunidades. A comunidade é a categoria fundamental na pré história americana, que se torna depositária de experiências de coletivos que se consolidam e produzem instituições.

O objetivo deste ensaio é percorrer criticamente um campo temático cuja elaboração deve ter consideráveis efeitos indiretos na explicação de processos econômicos da atualidade. O estudo refere-se à gestão do trabalho no universo americano pré ibérico e às condições sociais de acumulação nas sociedades teocráticas, agrárias e militares americanas. Segue, portanto, a pista aberta por Angel Palerm (1972), relativa à propriedade de pensar em termos de modo "asiático" de produção. Espera-se que outros autores, melhor qualificados e equipados, prossigam nesse esforço de esclarecimento.

Uma segunda questão fundamental, que deriva da anterior, que se esboça por trás dessa pesquisa sobre a pré história americana, refere-se à possível pré disposição das sociedades americanas para absorver as formas de dominação impostas desde a invasão ibérica, especificamente às formas de controle do trabalho; e aos elementos de resistência e às contradições entre o estilo civilizatório "ocidental " e a realidade americana. A América atual é um desdobramento da civilização "ocidental", ou é outro ocidente, o Extremo Ocidente, entretanto formado com ingredientes majoritários que jamais participaram da civilização greco-judaica européia? Trata-se do componente americano propriamente dito, cujos processos formativos foram subsumidos pelos da invasão européia; e do componente africano, que foi marginal - ou negado - na Europa e fundamental na formação da América moderna.

Algumas hipóteses interpretativas

Este trabalho parte de duas observações e de uma hipótese, aparentemente não contraditórias com os principais corpos de conhecimento organizado sobre o continente. As observações referem-se ao período anterior à invasão ibérica e aos resultados alcançados pelos povos sedentários mais numerosos. A hipótese refere-se à não linearidade dos processos americanos em escala secular, com avanços e recuos, estruturações e decomposição de regiões, que aprofundaram e ampliaram, mas não delimitaram, o que se pode chamar de abismo americano. Há muitos elementos, que podem ser combinados para esboçar um painel, irregular, desigualmente consistente, mas em princípio conducente ao encaminhamento de um esforço interpretativo a ser paulatinamente avaliado e confirmado ou redirecionado.

Essa hipótese geral de não linearidade tem algumas implicações práticas fundamentais.Não linearidade significa que não houve elementos de continuidade suficientes entre uma civilização e a seguinte, o que, por sua vez, significa, dentre outras coisas, que os progressos técnicos não necessariamente se transmitem e que a acumulação de capital nem sempre serve às sociedades seguintes. Entretanto, quanto a produção de solo e as obras hidráulicas feitas por um povo serviu aos povos seguintes?

É indiscutível que o principal traço da América pré ibérica avançada, claramente localizado nas civilizações andinas, é o desenvolvimento de uma produção agrícola controlada, especialmente com a produção de solos cultiváveis, controle de usos de água e desenvolvimento de culturas alimentares de qualidade controlada. Isso compreende a construção de áreas cultiváveis em vales e em pendentes, que é um conjunto de obras de manejo de solo e de terraplanagem e o desenvolvimento das culturas básicas: milho, batata, quínoa. A terraplanagem tem um componente religioso e monumental, tal como em Texcoco no México, e tem o componente de obras de translado de pedras e terra, para construção de espaços planos artificiais para cultivo, em pendentes – Andes – e em pequenos vales.

No século e meio anterior à invasão ibérica, os povos americanos evoluíram em dois sentidos fundamentais, que foram, a proliferação de cidades, compreendendo algumas cidades de grande porte; e o desenvolvimento de sistemas alimentares apoiados em sistemas de abastecimento de longas distâncias. Além disso, aparentemente entre os séculos X e XI, resolveram alguns problemas técnicos de produzir alimentos semi elaborados em grande quantidade. Parece haver uma estreita aproximação entre essa solução da questão alimentar e a construção de impérios. Nenhum desses dois componentes foi então inventado. De fato, que em alguns lugares, como no norte do Peru, esses problemas podem ter sido resolvidos entre os séculos IV e V. Mas no período dos séculos X e XI houve uma mudança fundamental, em conseqüência de sua combinação e, aparentemente, em conexão com o grande aumento de população a que essa combinação esteve associada.

Todas essas hipóteses estão expostas a crescente crítica, advinda da ampliação do conhecimento do universo pré ibérico, que encontra fenômenos urbanos de grande escala há mais tempo, se bem que - pelo menos até agora - situados na relação palácio--casebres apontada por Vernant como características do mundo helênico pré dórico. A observação parece confirmar-se plenamente, desde a organização social de Teotihuacan (Vale do Mexico) à de Pachacamac (Peru central), inclusive do mundo maia.
De qualquer modo, a mudança no eixo urbanização-alimentos exigiu a solução de dois problemas, respectivamente, de transportes e de conservação de alimentos; e de aprovisionamento de água em grandes quantidades. Em toda a América foram soluções extremamente penosas, dependentes de população numerosa, dada a falta de animais de carga. Tecnologicamente, a urbanização de Cuzco ( Sul do Peru) no século XIII e de Tenochtitlán ( Vale do Mexico) no século XIV não podem ser comparadas com a de Cnossos ( Creta), nem sequer com a da Babilônia de Sargão, pela falta de burros ou de camelos. Comparada com camelos e dromedários, a lhama é insignificante.
[1] Torna-se, portanto, inevitável tomar como estratégica a relação demografia-urbanização, assim como se revelam fundamentais as interfaces entre as formas de produção agrícola e as necessidades de instrumentos de lavoura.

Esse movimento geral conteve três grandes movimentos aglutinadores, no altiplano mexicano central, no altiplano andino e nas savanas mesoamericanas; e diversas outras expressões, de médio e de pequeno porte, similares em tendência. Os dois primeiros foram síntese de uma variedade de formações sociais não necessariamente contínuas, mas certamente interligadas. Mas esses movimentos coincidiram com diversos outros, de menor profundidade, de variável escala, de sedentarização e de início da agricultura, abrangendo grande número de povos. Verifica-se, portanto, a necessidade de examinar o eixo demografia-irrigação.

A economia da América anterior à invasão européia terá que ser subdividida em diversos períodos, tanto mais quanto mais complexos e diferenciados os grupos de eventos considerados. Mas, em todo caso, padecerá de uma restrição fundamental, de trabalhar com um ponto de partida móvel, que deverá recuar, bem como ceder a realinhamentos, ao revelarem-se ligações entre suas áreas mais densas de acontecimentos; e com outras áreas mais densas de acontecimentos; e com outras áreas densas fora do continente. É preciso manter abertas opções de análise de outras ligações intercontinentais além das da invasão ibérica, que tenham significado histórico, bem como é preciso dar maior peso a comunicações continentais na própria América.

Isso envolve uma forte crítica da história oficializada. Em princípio não parece razoável supor que o homem pré glaciar pôde migrar e que seus sucessores jamais puderam. Porque houve movimentos migratórios entre 20 e 14 mil anos e não houve depois disso? Tampouco se pode desconhecer o potencial explicativo das migrações polinésias, comprovadas no trajeto Bali-Hawai e testemunhadas até pela cozinha dos povos indígenas da costa do Pacífico, desde o Chile até o México
[2]. Um aspecto fundamental a explorar, é a evolução de nossa capacidade de formular hipóteses capazes de desequilibrar os modelos explicativos oficializados. Se, por um lado, é preciso admitir que há culturas antigas, como a dos olmecas, cujas características e origem divergem de um modelo central explicativo das migrações mesoamericanas, por outro lado é preciso admitir a possibilidade de que pode haver outros eventos migratórios, que em seu conjunto reduzam o poder explicativo do movimento entre terras áridas e terras férteis entre o norte e o centro do México.

O olhar sobre o passado remoto enfrenta a diminuição progressiva de visibilidade e a crescente fragmentação dos elementos de conhecimento. De todos modos, há pistas, há trilhas a seguir e há comparações a fazer. A atitude é semelhante à dos arqueólogos, que trabalham com material obtido de raspagens e furos realizados na direção de espaços menos densos. Destacam-se duas pistas dentre muitas a serem seguidas, que se referem aos aspectos de continuidade e de descontinuidade dos movimentos civilizatórios; e à relação entre o conhecimento especulativo e o prático.

Mas, como se trata da leitura de material desigual e do registro da trajetória através de seus capítulos mais recentes, há uma necessidade de buscar referências relativamente mais estáveis em que se apoiar. Daí, há um problema inevitável, de desenvolver uma progressão de comparações, para formar juízo sobre os elementos de conhecimento disponíveis. A história da América é cerceada pela escassez de pesquisa e pelo viés de tender a reduzir a complexidade do continente às cadeias de eventos identificadas com as sociedades americanas mais desenvolvidas. Tende a ser a história do Peru e do México, apesar da importância indiscutível da história da Colômbia.

Chegar a uma história mais abrangente e equilibrada também é um objetivo inevitável desse estudo do passado pré ibérico. Na América, os esquemas explicativos gerais têm sido, repetidamente, quebrados por achados e por reavaliações de núcleos antigos, responsáveis de produtos reveladores de maturidade, portanto, de um trajetória formativa própria. Os povos do ouro e do artesanato (Disselhof, 1967) da costa ocidental da Colombia, do delta do Magdalena e da América Central constituem uma bacia cultural complexa e plural, de que há indícios de uma agricultura antiga, provavelmente a ser equiparada com as etapas formativas do Peru pré incaico. As indicações de que o contexto civilizatório andino é mais antigo que o mesoamericano só são válidas enquanto se trabalha com as civilizações já datadas.

O reconhecimento de que a história do continente está constituída de avanços e recuos é parte necessária da comparação entre os séculos X e XI e XIII e XIV e envolve, igualmente, as regiões das sociedades mais avançadas. Por extensão, obriga a uma explicação das decadências, de que apenas se tem feito algo no relativo aos maias. Possíveis causas reiterativas de decadência demandam mais explicações que as disponíveis.

A comparação com a civilização "ocidental " é inevitável, porque é a melhor documentada e mais conhecida. Nela, a América a rigor deve constar como o Extremo Ocidente e os países do Mar do Norte podem ser classificados como Ocidente Próximo. Mas é uma comparação que não pode ser tratada com o eurocentrismo típico da visão do Iluminismo. A revelação, ou o reconhecimento das vertentes orientais e a revisão da visão da África, levam a pluralizar as comparações da América. O mundo americano pré ibérico não se compara com a Europa ocidental, senão com a variedade de regiões do mundo que foram atingidas pela agressividade daquelas nações européias que ultrapassaram os limites da formação local de poder. A diferença com as demais regiões foi que aqui o capital mercantil desencadeou uma grande migração, principalmente constituída de africanos, mas da qual participaram muitos outros, integrando minorias de outras partes do mundo.

Observa-se que Portugal não entrou nesse jogo na qualidade de país pequeno, senão na qualidade de país que se beneficiou de movimentos internacionais, concretamente, da imigração de capitais da rica Andaluzia. As cadeias de eventos que dominaram a península ibérica no século XIV compreenderam a ligação da nobreza portuguesa com as ordens militares religiosas, bem como os efeitos da invasão da Andaluzia pelos castelhanos, que iniciou a passagem de capitais daquela região para Portugal. O conto da motivação religiosa da conquista parece tão pueril quanto o mito do pacifismo lusitano.

Referências da economia americana pré ibérica

Nesta análise são necessárias referências adequadas para refletir o espectro de formas de organização e de atividades registradas no continente. Nesse sentido, colocam-se dois encaminhamentos. O primeiro, de situar as referências da fase final pré ibérica. O segundo, de referências das formas organizacionais e das tecnologias americanas. A generalização de algumas tecnologias e o aperfeiçoamento de alguns produtos indicam as peculiaridades das grandes bacias culturais, mas também assinalam os mecanismos de controle político e militar desenvolvidos em cada uma delas. Se essas sociedades foram não capitalistas, não há como desconhecer que seu progresso em termos de dieta de sua população constituía um progresso material necessário aos seus objetivos implícitos.

Como observações gerais, que afetam esta reflexão em seu conjunto, agregam-se outras duas. Primeiro, que não é razoável restringir as comunicações com outros continentes à suposta migração original por Behring. Segundo, que a construção de uma visão americana significa uma subversão da visão tradicional, que é derivada da européia. As diversas explicações da vinda de vikings, fenícios e polinésios, têm variados fundamentos históricos, mas, em todo caso, indicam prováveis rumos da história antiga que deslocam a história oficializada.

As referências da fase final pré ibérica compreendem uma visão geral das formas organizativas, representando os diversos sistemas conhecidos, os elementos transferidos ou herdados de culturas anteriores, e as ligações entre sistemas e entre sociedades. Tal visão, logicamente, pressupõe que se reúnam os elementos disponíveis de conhecimento em nova organização, destacando a linha de tensão entre a sustentabilidade econômica das organizações sócio-políticas e a capacidade de expandir-se que revelaram as organizações em suas diversas escalas demográficas e territoriais.

Nesse esforço, outra vez, são necessários esclarecimentos preliminares, sobre as condições objetivas da análise e sobre suas implicações subjetivas. A história da América anterior à invasão ibérica é uma história quase exclusivamente externa, mercê de ampla e profunda separação entre sujeito e objeto de estudo. O universo de subjetividade americana só é recuperado através de sobrevivências modificadas na atualidade, portanto, desiguais seguindo as áreas culturais em que os componentes anteriores são identificáveis.

Objetivamente, esta análise enfrenta as dificuldades consequentes de escassez e irregularidade de material relevante, especialmente sobre os povos menos poderosos e mais atrasados. A América pré ibérica foi muito destruída, mas não se sabe concretamente quanto dela foi destruído no século XVI e quanto foi destruído antes do século XVI, no contexto de processos exclusivamente americanos. Precisa-se, especialmente, de observações sobre os aspectos materiais da organização social, que vão se refletir na capacidade de acumular, além da competência com que se produz para consumir.

Isso significa tratar do potencial de desenvolver-se dessas sociedades. A análise conseqüente refere-se às condições locais de realização dos processos sociais econômicos. Na América pré ibérica os processos econômicos organizaram-se em regiões de variadas densidade e estabilidade, cuja duração tem uma correspondência com os efeitos indiretos na indução de outras regiões e de transformação das organizações sociais e políticas.

A visão atual da América foi formada a partir da visão européia herdando, portanto, os preconceitos dos povos dominadores, que em parte para justificarem sua agressão, e em parte para valorizarem sua posição, desmereceram os resultados materiais alcançados pelos povos americanos, ou trataram-nos simplesmente como pitorescos ou excepcionais.

O preconceito assumiu diversas formas, desde a da separação, ou da suposta ruptura entre os processos pré ibéricos e os do período colonial, até os que transformaram os processos americanos em meramente culturais, no sentido em que, tratados como formas sociais incapazes de evoluírem no contexto tecnológico da civilização ocidental. No entanto, não se podem evitar perguntas sobre as tendências de transformação material das sociedades americanas, quando elas foram atingidas pelos países da Europa ocidental.

As experiências da Espanha e de Portugal são obviamente as principais dessa avalanche do século XVI, mas é preciso levar em conta as experiências dos franceses e dos holandeses no processo colonial. Enquanto os portugueses trabalharam para construir um espaço colonial produtor agrícola, os espanhóis procuraram obter resultados da mineração, relegando a agricultura à função de supridora local de alimentos. Mas, certamente, foram os holandeses que lançaram uma tentativa moderna no sentido de pós feudal e mercantil internacional, capaz de superar plenamente os referenciais de eficiência dos ibéricos.

No reconhecimento dos conteúdos tecnológicos americanos, destacam-se a agricultura, o artesanato e a construção civil. As sociedades mais avançadas distinguem-se, justamente por terem dominado esses três componentes e alcançarem, paralelamente ou consequencialmente, uma ligação entre a especulação metafísica e cosmológica e os usos das tecnologias. O conjunto megalítico de Xochicalco, no Mexico central, é uma das mais nítidas representações dessa situação, em que a fusão das culturas mexica e maia deu lugar a uma combinação de representações astronômicas e de simbologia religiosa da agricultura.

Oficialmente, os europeus fizeram tabula rasa da experiência agrícola anterior, apesar de usarem-na como aparelho subordinado dos sistemas de produção localmente organizados. No entanto, esse desdém pelo conhecimento prático indígena está em aberta contradição com a incorporação dos principais alimentos locais, tais como batatas, milho, tomates, mandioca, além do chocolate e diversos animais de criação, bem como das técnicas e dos materiais de construção. A agricultura em terraços, a agricultura com controle de salinização, praticadas na área andina, da Bolívia ao Equador, são elementos técnicos de uma tecnologia e de uma organização social adaptada ao meio físico.

Fica em aberto a questão relativa ao artesanato, que quase sempre é tratado por seus aspectos de adorno, tomando-se o artesanato utilitário apenas pelo que representa de aperfeiçoamento técnico. No entanto, falta uma análise arqueológica suficiente, para avaliar a importância da qualidade dos instrumentos artesanais de trabalho. A falta de uma metalurgia utilitária leva, num primeiro momento, a subestimar a qualidade dos instrumentos de madeira e de pedra. Entretanto é uma linha de trabalho a ser melhor explorada. As pontes suspensas do Peru são uma prova incontestável do aperfeiçoamento do uso utilitário de madeira e fibras.

A desqualificação de conhecimento tecnológico americano por parte dos conquistadores, primeiro de portugueses e espanhóis e depois por holandeses e ingleses, foi um processo similar ao antes realizado pelos indo-europeus com o conhecimento do mundo islâmico, também incorporado e negado. Neste caso, a desqualificação foi parte de uma operação ideológica, destinada a justificar a escravidão, que, entretanto, deixou inúmeros pontos sem resposta, especialmente no relativo ao suprimento de alimentos[3].
Ao comparar os resultados obtidos nas sociedades americanas com os europeus, somos levados a toma-las como equivalentes da capacidade de produção da Alta Idade Média e não da Baixa Idade Média.

Usos de trabalho

Os usos de trabalho na América foram condicionados pela falta de animais de carga e transporte, pelas condições físicas da agricultura nas áreas colonizadas pelos pré ibéricos - montanhas, comparadas com os bosques europeus - e pelas grandes extensões semi-áridas. Aparentemente, as sociedades que floresceram em áreas hoje de floresta, prosperaram quando elas eram menos densas; e em todo caso em condições hídricas especiais.

As sociedades americanas capazes de construir com materiais perenes foram as que conseguiram resolver os problemas de saúde pública das concentrações demográficas numerosas. Observe-se que a difusão de enfermidades promovida pelos espanhóis dependeu mais de sua incapacidade de resolver esses problemas, que de exposição a doenças novas, que poderiam ser controladas em melhores condiç ões de higiene.

As sociedades americanas avançadas usaram muito trabalho manual, que conseguiram liberar da rotina das lavouras, aparentemente em movimentos similares aos da Mesopotâmia,
[4] mediante elevados retornos de sua semeadura feita com chuços, não porque seus rendimentos por área aumentassem - que seria uma hipótese muito pouco provável - mas por diversificarem as roças e processarem a maior parte da produção. Ambos recursos podem ser vistos até hoje em comunidades indígenas no Mexico, na Colômbia, no Equador, no Peru. Os índios processam o milho, a batata, além de utilizarem uma grande variedade de estratégias para garantir seu suprimento de proteínas, como se infere dos depoimentos dos conquistadores.

De todos modos, foram sociedades que cultivaram o trabalho organizado a partir da esfera familiar, que por isso enfrentaram crescentes dificuldades para aumentar a dotação de trabalho necessária para formar capital. A passagem da esfera familiar à das comunidades é fundamental para explicar os movimentos de captação de trabalho. Isso aparentemente explica a repetição de práticas de escravidão praticada por povos que não acumularam capital no sentido capitalista desta expressão. Mas a preservação da esfera doméstica como referência da organização política faz com que os resultados da produção permaneçam na esfera do valor de uso, dando-se menor importância aos seus desdobramentos na esfera do valor de troca. A troca em si permanece subordinada às determinações dos usos.

As observações sobre a organização econômica estão objetivamente divididas entre as sociedades mais desenvolvidas recentes e menos desenvolvidas recentes, o que quer dizer, as mesoamericanas e andinas de um lado e caribenhas e atlânticas do outro. Mas essa é uma grande simplificação, que apenas ajuda aos estudiosos das vertentes nahua
[5] e maia [6] pelo norte e quechua pelo sul, sem penetrar no mais delicado da questão, que é a complexidade dos mundos mesoamericano e andino; e a falta de uma visão em profundidade da organização sócio-econômica, suficiente para ligar, por exemplo, os movimentos demográficos e urbanos do século XIII com os do século X.

A questão dos usos de trabalho na reprodução social surge como chave de um complexo argumento, que quebra o culturalismo, tão funcional e útil à visão "ocidental" da América. Ressalta-se que os usos de trabalho foram desenvolvidos pelas sociedades americanas e não pelos colonizadores, que deles se apropriaram. Se a instituição mexicana do ejido tem antecedentes na Espanha islâmica, não cabe dúvida que esse sistema de produção coletiva está ancorado na estruturação das comunidades indígenas (Ekstein, 1967).

A rigor, é o argumento que permite ultrapassar a discussão das formas institucionalizadas do canibalismo, para caminhar rumo a questionamentos objetivos. O canibalismo expandiu-se em Mesoamérica aparentemente a partir do século XI ao século XIII, ligado à supremacia tolteca, persistindo como prática generalizada das tribos neolíticas sul-americanas. Suas fronteiras não estão definidas, nem suas origens. Não está nas esferas maia, quechua, olmeca, nem entre mapuches. Entretanto, enraizou-se na sociedade azteca, sem ter contaminado os "etruscos" de Azcapotzalco ( Vale do Mexico).
[7]

O canibalismo foi, portanto, a máxima expressão de uma atitude auto destrutiva da sociedade mexicana, uma contradição fatal, dada sua necessidade de aumentar a mobilização de trabalho. Os equivalentes americanos do feudalismo limitaram-se à mobilização de trabalho pela esfera doméstica, criando um sistema rígido de relações de casta, fortemente repressor, que inibiu quaisquer formas de individualismo. A análise de Soustelle (1967) desse fenômeno evoca, intencionalmente ou não, o perfil de Esparta. O aparente desprezo dos mexicanos pela individualidade repetiu-se no Peru (Alden Mason, 1958). Mas essa seria apenas a atitude das duas principais sociedades militares do século XIV, que não reflete a dos povos por eles dominados.

A avaliação dessa contradição relativa ao trabalho alenta o argumento, manejado por diversos estudiosos, que as sociedades azteca e incaica estavam iniciando movimentos de decadência quando foram atacadas pelos espanhóis. Dadas suas limitações de mobilização de trabalho, sua capacidade de reproduzir-se decrescia rapidamente, acelerada pelos problemas de recursos para manter Tenochtittlan e Cuzco. A urbanização tem, assim, um significado muito maior que o do crescimento das cidades e o do monumentalismo.

O aprofundamento desse argumento leva, por extensão, a questionar o relativo à expansão da área cultivada e da subordinação, direta ou indireta, dos neolíticos aos sedentarizados. No México é fácil distinguir a separação entre a linhagem dos mexicas-aztecas e a dos povos mais pobres, tais como os otomís, mazahuas, huicholes, totonacas e outros. Mas na América do Sul esses fenômenos estão à espera de uma arqueoantropologia que revele os movimentos de ascensão e recomposição das sociedades, tal como fez Vernant.

Para o Brasil, é uma reviravolta necessária, para quebrar a linearidade da leitura "européia". Assim como não é mais possível aceitar que a perspectiva política feudal portuguesa dê conta da complexidade ibérica, tampouco é possível reduzir a América anterior à invasão ibérica ao universo cultural oferecido pela leitura norte-americana. O mundo indígena neolítico brasileiro surge com grande complexidade e com movimentos migratórios também importantes e de longas distâncias ( Ribeiro, 1996).

A história de acontecimentos ilustra e revê os limites da questão. Se o Brasil foi, de fato, descoberto por Yañez Pinzón
[8], redescoberto por Cabral, ou se ambos foram antecipados por diversos outros europeus, é sempre um modo de situar esses eventos como o primeiro dia da criação. Tal momento foi de atrelamento do espaço social americano à expansão do poderio da Europa ocidental. Representou a substituição dos usos de trabalho locais pelos impostos de fora. Mais que outras partes da América, o Brasil foi onde o projeto europeu de poder criou um lugar para a experiência maciça com a escravidão produzida para o capital mercantil.


O círculo de passado e presente

Provavelmente, a idéia americana pré ibérica mais poderosa é a de tempo finito e circular, das sociedades mexicanas. A finitude afirmou-se aqui com força equivalente à idéia jônica de infinito. O tempo finito mexicano
[9] permite tratar com a noção de repetição, [10] ao tempo em que torna compreensível que uma parte do mundo permanece constituída de formas mais simples de vida social, que se pode comodamente denominar de atrasadas. Essa noção não surge por acaso. Reflete uma relação entre a cosmologia e a sociologia histórica. No universo do tempo circular, o progresso é um substrato, algo que não se pretende, mas que não se evita. O poderio militar e político, no entanto, estava limitado pela capacidade de usá-lo.

Mais uma vez, verifica-se que uma comparação entre os séculos XI e XIII seria necessária, para concretizar uma perspectiva genuinamente histórica da América. Qual noção de progresso seria parte da expansão incaica? Qual da maia? É possível pensar em termos de progresso no espaço brasileiro? Como considerar os demais povos socialmente desenvolvidos que tiveram menor poder político? As transformações mencionadas da forma das cidades não são um registro de progresso?

A invasão ibérica quebrou as organizações sociais americanas e trouxe novo sentido de finalidade no plano da vida econômica e da estruturação política. A grande questão criada pela invasão européia, começada pelos portugueses e espanhóis, seguida da dos demais europeus, foi a de subordinação dos usos do trabalho a interesses externos; e de comando da composição do trabalho pelos interesses representando o capital mercantil.

Esse novo ordenamento criou um crescente número de grupos em formas de organização que se tornaram lugares de empobrecimento crônico. Assim como a escravidão organizada condenou os africanos à imagem de escravos, relegou a experiência americana à categoria de atraso. A questão da escravidão compreende a escravidão regulamentada de africanos e a escravidão não regulamentada, porém instituída dos indígenas nos países da América Espanhola.


Agricultura, urbanização e mercado

Não há como duvidar que as sociedades americanas alcançaram importantes resultados em sua agricultura e em sua construção civil, no campo genético e no da produção, na construção monumental e na utilitária, em escalas que lhes permitiu absorver seu crescimento demográfico. Esse processo de expansão da produção foi secularmente descontínuo nos Andes, mas conteve períodos longos de ampliação da área cultivada e da produção obtida, podendo-se considerar, à luz do conhecimento divulgado, que o principal fundamento rural do mundo andino pré ibérico é a produção de solo. Isso está muito claro, a partir de simples passeio pelo material exposto nos principais museus e parece ser, progressivamente, confirmado pelas novas observações de achados de áreas densamente povoadas. O período Wasi, particularmente, a partir do século III, marca claramente essa tendência, que, também na aparência, estaria limitada pela mobilidade dos trabalhadores.

Entretanto, esses sucessos foram decisivamente comprometidos por sua falta de uma metalurgia utilitária, assim como de não terem chegado à roda e não disporem de animais de tração. a ausência da roda determinou sua impossibilidade de chegaram à energia hidráulica, que foi a grande ruptura do Egito e da Mesopotâmia com a tração humana.

O argumento de que essas falhas se devessem à falta de organização do mercado revela-se improcedente, justamente, porque a urbanização levou à formação de mercados, no sentido original das feiras européias medievais. Só que nas sociedades americanas a formação de mercados ficou subordinada à organização feudal reorganizada no recinto urbano (Soustelle, 1972). Diferentemente do ocorrido nos países europeus, as sociedades americanas mantiveram a organização social pré urbana, impedindo que os interesses econômicos se expandissem. Somos obrigados a considerar como explicação mais plausível, que os fundamentos teocráticos, mais que o autoritarismo militar, foi o principal responsável de não surgirem sociedades de classe.

Assim, o estudo da América pré ibérica divide-se entre o daquelas sociedades que podem ser analisadas através da urbanização; e o daquelas outras que ficaram aquém dessa etapa. As grandes questões levantadas por Palerm, no relativo à organização do trabalho para as obras hidráulicas, aplicam-se com maior razão, à construção das cidades. As cidades resultam de atividade construtora contínua, enquanto as obras hidráulicas podem ser realizadas mediante trabalho estacional. A construção de cidades envolve um engajamento regular de trabalhadores, que depois ficam completamente desocupados e têm que ser engajados de outros modos, também suficientes para mantê-los. A experiência das cidades de hoje com trabalhadores da construção civil desempregados permite raciocinar por analogia com esses problemas das sociedades pré ibéricas.

Sem dúvida, é preciso conhecer melhor o significado social da urbanização pré ibérica, combinar o alargamento da base factual da urbanização - construção e reforma de cidades - com o aprofundamento do conhecimento de seu papel na formação daquelas sociedades. Há toda uma escala de urbanização para servir a finalidades locais e como parte de sociedades nacionais pluri étnicas, como no Peru. A complexidade de muitas dessas cidades revela situações além da polaridade palácio-casebres, apesar de não terem alcançado um equivalente da agora grega.
[11] Também, é inevitável considerar que o tipo de urbanização representado pelas grandes cidades americanas, Cuzco e Tenochtitlan, contrasta com os conjuntos teocráticos de Teotihuacan, Monte Albán e Pachacamac, e das fortalezas megalíticas de Chicomostoc (Zacatecas, Mex.), Tzintzuntzan (Michoacan, Mex.), Paracas (Peru). Também fica por estabelecer em qual categoria se colocam os mochicas e Tiahuanaco (Bolívia) supostamente mais antigos que os anteriores.

Há aspectos de formação inicial e de desenvolvimento das cidades, assim como há o papel da urbanização na vida econômica, no que ela representa um mercado de materiais de construção, uma atividade construtora. Junto com isso, há a necessidade de superar alguns preconceitos da "visão européia" do processo, que tendeu a ver essa urbanização como um produto monumental de sociedades teocráticas. Os progressos dos estudos arqueológicos e da sociologia histórica encarregam-se de revelar a complexidade dessa urbanização, que afinal foi feita para os grupos de sociedades vivas.

O mundo feudal não mercantil foi, entretanto, relativamente muito urbano. Funcionou com muito artesanato especializado e com feiras de artigos domésticos, facilitadas por estradas hoje insuficientes, porém mais que adequadas ao tráfego de pedestres. Já se podem adiantar alguns conceitos sobre a urbanização dessas sociedades, que levam a trabalhar com a hipótese de que a urbanização pré ibérica teve características próprias e em todo caso, que se assemelhou mais da do Oriente Próximo que da européia. Mas apenas se percebe melhor o que ainda não se sabe. A urbanização pode ser uma chave especial de acesso à economia pré ibérica.


Uma inversão do olhar colonizador

A história da América pré ibérica, tal como a dos marginalizados pela expansão do capital mercantil, está quase toda por escrever-se. Enfrenta as dificuldades determinadas pela destruição de documentos e por preconceitos impostos pela legitimação da dominação. Terá que avançar na direção do passado, alargando sua base de referências, selecionando informações e estabelecendo hipóteses interpretativas, para reincorporar personagens que foram progressivamente excluídos. De qualquer modo, é preciso avançar no exercício de escavar esse subterrâneo da atualidade, para mostrar como ele é parte essencial da formação da atualidade.

Uma linha inevitável de argumentação desse estudo é a que liga o aumento de densidade demográfica às mudanças qualitativas dos assentamentos, que pode ser observada no contexto rural e na urbanização, em diferentes escalas. A conexão entre as migrações e o declínio dos maias e as migrações dos olmecas - da costa do Golfo do Mexico para o sul do altiplano - são dois exemplos a serem sempre considerados, mas não são os únicos. As migrações dos povos neolíticos terão que ser apreciadas com argumentos desse tipo, que poderão ajudar a entender o tecido geográfico dos assentamentos indígenas no escudo atlântico. É difícil imaginar que as migrações dos grupos tupis não estivessem ligadas a problemas ambientais de sua sobrevivência.

Além disso, falta esclarecer as relações entre as sociedades avançadas pré ibéricas e as sociedades neolíticas. Desde o período de Teotihuacan até o do Império Incaico, podem ser mapeadas relações entre os povos mais avançados e os mais atrasados, que fundamentam a principal hipótese da formação da Mesoamérica, como um conjunto de movimentos que convergiriam para o Vale do México, principalmente de movimentos norte-sul. Outros movimentos, das costas para o centro do México completariam esse modelo, que, apesar de tudo, parece demasiado simples e depende demais do poder de atração do centro do México. Como se outras regiões férteis também não cumprissem esse papel.

De qualquer modo, há uma hipótese central sobre Mesoamérica, onde os fatores climáticos permitem supor que essas relações tiveram sempre um movimento constante, entre os não sedentários do norte e os sedentários do centro. Essa hipótese encontra grandes limitações no relativo à origem e aos movimentos migratórios dos olmecas, que teriam aparecido na costa centro-sul do Golfo do México e teriam migrado ao altiplano sudoeste, encontrando-se nas camadas mais antigas de Monte Albán. Na realidade, o povoamento das regiões da costa do Golfo – norte, centro e sul – demanda outras hipóteses explicativas, Outros eventos do povoamento do centro-norte do México contrariam aquela hipótese, que, entretanto, permanece válida no relativo ao processo formativo das regiões centrais.

Na América do Sul parecem ter sido movimentos muito mais complexos, ficando ainda por determinar as influências indiretas da civilização andina.
[12] No relativo ao atual espaço brasileiro, há inúmeras indicações de contacto com o altiplano, que certamente terão tido algum papel na reprodução social de uns e de outros.

As sociedades americanas tiveram que responder aos desafios crescentes da concentração demográfica, em condições que levantaram dúvidas sobre suas escolhas iniciais de localização, especialmente sobre os lugares mais altos, acima dos 3.000 metros. Certamente, as tecnologias e a organização social puseram limites a essa concentração, que precisam ser melhor explicados. A principal pista é o controle do suprimento e da qualidade da água, que tomou características peculiares, segundo a altitude dos assentamentos e segundo sua localização em relação com fontes renováveis.

Mas esse aspecto da argumentação da concentração demográfica está sujeito a muitas qualificações, porque não sabemos como se processaram as condições de saúde pública. Sabe-se que as condições naturais de controle funcionaram melhor em ambientes sociais menos sujeitos à concentração de agentes conservantes de alimentos e de vestuário. Mas faltam-nos muitas informações sobre as modificações estruturais das cidades nos séculos XII e XIII, para podermos formar alguns juízos significativos sobre o papel das cidades de grande porte no movimento geral de urbanização.

As observações atuais sobre comunidades indígenas dão muitas pistas sobre esse tema, entretanto que devem ser tomadas com cautela, dada a acumulação de influências externas sobre elas. Tenochtitlán desapareceu e Cuzco tornou-se outra cidade. Por isso, o problema de pesquisa concentra-se, realmente, nos movimentos gerais de adensamento demográfico e de urbanização em sua relação com as soluções dadas aos problemas de alimentação. As comunidades indígenas situam-se como os elementos menos descontínuos de referência, apesar de terem sido parte da destruição sócio-cultural.


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[1] Uma llama pode carregar uns 25 quilos, comparado com uns 50 que um homem pode carregar no altiplano e uns 100 que um burro pode suportar nas altitudes moderadas das civilizações do Oriente Próximo.
[2] Há uma notável semelhança entre certas modalidades de preparo de alimentos, enterrados e com calor na superfície, que se encontram desde o sul do Chile até o México, que são reconhecidas como de origem polinésia.Migrações polinésias à América têm que ser avaliadas à luz de informações sobre correntes marítimas e qualidade das embarcações.
[3] Cada um dos povos europeus conquistadores teve um projeto de poder a longo prazo em seu empreendimento colonizador, que ainda precisa ser melhor examinado como um conjunto. O projeto espanhol de poder foi bem apresentado por Salvador de Madariaga na visão espanhola e por Clarence Haring numa visão saxônica.O trabalho recente de Jacques Rufin apresenta, aparentemente por primeira vez, uma visão geral do projeto francês de colonização. No relativo ao projeto holandês, há uma obra extensa e consistente de Ewaldo Correa de Melo, numa perspectiva brasileira, mas não conhecemos um trabalho equivalente dos próprios holandeses. Em todo caso, está claro que o projeto holandês não pode ser reduzido às invasões no Brasil, mas compreende o conjunto das investidas nas Antilhas e na América Central.
[4] Nesse aspecto podem comparar-se sumérios e maias na relação entre sementes plantadas e grãos colhidos, que seria superior à média européia, segundo aponta a arqueologia.
[5] Língua hegemônica entre os grupos mexicanos do norte, mas não necessariamente a mais falada em Mesoamérica. O panorama lingüístico da metade norte da América apresenta inúmeras dificuldades, pela presença de grupos culturais sem relação aparente de antecedente – conseqüente e demandando explicações das estruturas de cada língua, num contexto que, certamente, não se encaixa no padrão continental eurasiano das grandes línguas indo-européias e semitas. Algo equivalente acontece no sul do continente americano, onde se encontram grupos, tais como os charruas e dos aimorés, que não se encaixam no grande conjunto tupi – guarani.
[6] Grupo de línguas da civilização maia
[7] Há um paralelismo entre a formação de Tenochtitlan e a de Roma, que em ambos casos foi feita por grupos pobres e retardatários que se instalaram em terras baixas e úmidas, começaram como auxiliares de grupos mais ricos instalados em terras mais altas e posteriormente tomaram seu lugar. Os senhores de Azcapotzalco tiveram papel equivalente ao dos etruscos; e tal como os sabinos, supriram seus primos pobres e aguerridos com reis para iniciar sua dinastia. Netzayalcoatl foi o Numa Tarquínio do Mexico.
[8] Cabe destacar a importância política de desconsiderar-se o fato de que esse navegador espanhol chegou ao Cabo Santo Agostinho no Nordeste alguns meses antes que Cabral, bem como de que a definição do império português no Brasil esteve longe de ser automática e gestou-se ao longo do século XVI.
[9] A concepção do tempo como tempo finito, constituído de ciclos de 52 anos, é um dos traços característicos dos mexicas, que deu sustentação a sua cosmovisão de ciclos de vida social, com uma semana de luto coletivo e com as cerimônias de acender o fogo e sacrifícios humanos, associados aos rituais para convencer o sol a retomar seu caminho diário.
[10] Convém ver O mito do eterno retorno de Mircea Eliade, tanto como seu Chamanismo. Essas obras trazem muitos pontos de afinidade para a construção de uma explicação do histórico das culturas andinas.
[11] Além de levantamentos, os trabalhos de Jorge Hardoy analisam a funcionalidade das cidades americanas, mostrando-as como genuínos produtos dessas sociedades avançadas, que também foram sínteses de processos pluri étnicos e pluri culturais. A análise do urbanismo americano ajuda a derrubar um dos principais mitos do colonialismo, qual seja, de que o planejamento urbano na América é uma contribuição exclusiva do racionalismo europeu, que as sociedades americanas tivessem ficado restritas às possibilidades de ordenamento territorial da ordem teocrática.O urbanismo em Cuzco e em Tenochtitlán representa uma condição de ordenamento dos espaços urbanos, que não pode ser restrito ao fundamento religioso e militar.
[12] Surpreende a freqüência com que se encontram no Brasil termos nitidamente andinos, incorporados como se fossem indígenas locais, ou sem origem conhecida, que aparecem em São Paulo.