segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O NORDESTE NA FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL

Um enquadramento do tema

O trabalho de Furtado em seu momento constituiu uma revolução no estudo da história econômica, especialmente no da história do Brasil, ao situar a origem da formação deste país no movimento geral do capital mercantil e mostrar como sua criação foi parte dos interesses que construíam os Estados nacionais europeus. Hoje pode ser reavaliado pela contribuição que representou e como indicativo das bases informativas e das condições ideológicas que prevaleceram na análise econômica naquele período. Precisamos vê-lo em seu valor de hoje como peça que interage na compreensão do país com sua complexidade. Para apreciar adequadamente esse trabalho no que ele tem de permanente, é preciso considerá-lo à luz da percepção histórica do processo social e das origens do processo de formação do Nordeste (Guimarães Neto, 1989), entendendo o significado das simplificações em que ele incorre.
.
Inicialmente, trata-se de colocar a criação do Brasil no contexto do movimento geral de expansão do capital e da estruturação de um poder político que se descolava de seu fundamento feudal. Na formação do capital mercantil moderno as alianças que se costuravam entre comerciantes e armadores envolviam a sustentação econômica dos monarcas e a abertura de rotas comerciais no ocidente. Surgiram projetos de expansão oceânica, primeiro sobre a África, em que os portugueses tomaram a dianteira dos espanhóis, mas em que, para ambos, tratava-se de uma continuação da guerra contra os muçulmanos. O modo como esse projeto de poder atingia aos africanos era uma decorrência de uma postura belicosa que ficou ilustrada pelo ataque a Ceuta e no comportamento de Vasco da Gama. A questão contraditória que se coloca a seguir está na ambigüidade das relações da Coroa portuguesa com os judeus, já hostilizados na Espanha desde o século XIV[1]. Falta dizer – Furtado omite – que esse movimento pelo oeste foi alentado pelos efeitos da expansão castelhana na Espanha, que configurava um perigo constante para a soberania de Portugal. O mesmo determinante externo que levou Portugal a essa aliança exótica com a Inglaterra estimulou a construção de poder econômico, político e militar fora da península ibérica.
.
O propósito de construir espaços de poder capazes de compensar as pretensões de unificar a península ibérica tornar-se-ia a principal referencia de política externa de Portugal. Desde o século XIV, com D. Diniz, a visão internacional de Portugal era bastante mais aberta que a da Espanha, onde a visão feudal castelhana e a mercantil catalã ainda não tenham definido um modelo interno de poder, e não tinham encontrado um substituto econômico para o poder muçulmano. A clareza do projeto político, econômico e militar português permitiu que se definissem funções para as regiões de que ele se constituía. A expansão foi um projeto de Estado. A diferença entre as colônias no Brasil e na África foi que estas se definiam como regiões produtivas enquanto aquelas foram apenas áreas de depredação. No período de expansão do Império o Nordeste, especialmente a Bahia, desempenhou uma função primordial na articulação do comércio e não só como região produtora, conquanto essa fosse uma função de suma importância[2]. No século XVII o Nordeste foi tão valioso que justificou que Portugal por ele pagasse aos holandeses (Mello, 2003), além de retirar da memória o papel da luta pelo controle da escravização na configuração do poder na colônia (Alencastro, 1999).
.
No final do século XV Portugal já tinha reunidos todos os elementos necessários para o fundamento econômico de seu império e parece ser uma simplificação indevida reduzir esse projeto à produção de açúcar, por mais que essa mercadoria fosse o eixo de um sistema de negócios em expansão. O projeto imperial compreendia o domínio de uma variedade de produtos e de técnicas de produção, bem como o uso de novas formas de administração. O Nordeste foi uma grande região produtora de mercadorias e de serviços essenciais ao funcionamento do Império, tornando-se necessário entender que se tratou da região em seu conjunto, com a exportação do extrativismo e com o conjunto dos produtos e serviços e não só a produção de açúcar, que desempenhou esse papel. O extrativismo gerou importantes exportações de madeiras de lei e de fibras, além do óleo de baleia e da contribuição ao funcionamento da navegação oceânica. A identificação desse conjunto de formas econômicas com tradições comuns criadas através de movimentos próprios de expansão territorial deu ao Nordeste uma personalidade regional anterior à de outras partes do país. Esse fundamento histórico constitui uma referência que emerge da literatura regional, mas que não foi cabalmente explorado pela história econômica.
.
.
A pluralidade inicial

A obra de Celso Furtado contribuiu poderosamente para renovar uma polêmica sobre a identidade do Nordeste, que foi alimentada por diferenças na região; e por visões externas, geralmente simplificadoras e tendentes a desvalorizar o papel da região na formação do país, especialmente no século XX. Que ou quem seria o Nordeste? Porque considerá-lo uma região carente se foi a região mais rica do país durante mais de duzentos anos? Porque não investigar as causas sociais e políticas do atraso? Desde que o governo brasileiro descobriu a seca encontrou um argumento poderoso para desentender-se dos problemas sociais e políticos herdados do colonialismo e da escravidão. A representação do sistema de poder formado pela produção canavieira ou a estrutura de poder baseada na grande propriedade rural? Quanto é possível identificar a grande propriedade com a produção canavieira? A grande propriedade expandiu-se com a produção da pecuária e sobreviveu, como forma de poder, à decadência da produção açucareira. Uma hipótese colateral a ser examinada é que o Nordeste perdeu funções por não ter sido capaz de se atualizar como província mineira no momento em que a mineração emergia em Minas Gerais e sustentava o proveitoso contrabando da região do Rio da Prata.
.
A política de D. João VI operou no sentido de fragilizar a posição do Nordeste na estrutura do poder no país, consagrando uma tendência negativa da economia da região, contribuindo para que as elites nordestinas assumissem posições de contestação ao sistema de poder que se implantava com o autoritarismo dos Bragança. O papel das elites criadas no ambiente da economia mercantil no Nordeste veio a ser decisivo na constituição de grupos de poder, do mesmo modo como a renovação de elites subsidiadas foi fundamental na arquitetura do poder no período de autoritarismo de 64 a 84 (Chilcote, 1992). Frente ao argumento de circulação das elites, cabe considerar que no Nordeste tem havido pouca mobilidade, mesmo em situações em que as velhas elites perderam poder[3].
.
A Formação Econômica do Brasil marcou um estilo de análise que foi precursor de algumas das teses mais importantes da historiografia latino-americana, repetida nos anos subseqüentes por Aldo Ferrer numa análise da economia argentina e por Horacio de la Peña em estudo da economia mexicana. Reproduzir a análise de Furtado tornou-se uma referência nos estudos latino-americanos. Uma análise histórica focalizada em grandes movimentos que contracenou com a História Econômica do Brasil de Caio Prado Junior, ao qual deve mais que reconhece. É um trabalho demarcatório de uma nova etapa de análise histórica, a ser devidamente reconhecida. Mas, assim como preencheu espaços deixou outros em branco. Passou por alto diversos elementos já conhecidos sobre essa parte do Brasil, cuja ausência contribuiria adiante para que se formassem mitos simplificadores, tributários de uma ideologia regional cortada ao feitio do bloco regional de poder.
.
Outrossim, uma questão fundamental a ser enfrentada é a ligação entre o passado e o presente. Essa continuidade tem um papel fundamental diante de um quadro de recorrência de controle político da economia, de permanência de grupos incompatíveis com mobilidade social e com a superação do autoritarismo pré-industrial sustentado no controle dos recursos naturais. É inevitável ponderar como o fim do autoritarismo militar cedeu lugar ao retorno de políticos nordestinos anteriores àquele período – e que dele se aproveitaram – que se articularam com novos grupos econômicos cevados em contratos com os governos militares e robustecidos por vantagens monopolísticas no mercado interno. As obras públicas – principalmente barragens e estradas – foram os instrumentos desse enriquecimento seletivo, que foi complementado com distritos de irrigação e com crédito preferencial (Chilcote, 1992; Silva Filho, 2004). As obras públicas funcionaram como um sistema seletivo de valorização de terras, curiosamente favorecendo os grandes proprietários. O ambiente do autoritarismo favoreceu um movimento original de atualização de sistemas de poder que já se encontravam desgastados pelo declínio da indústria de bens de consumo e pela incapacidade da agricultura exportadora tradicional, organizada em torno do açúcar, do fumo e do algodão, para se adaptar às mudanças do mercado mundial. Criou-se um mito de que a economia do Nordeste foi subordinada pela expansão da economia de São Paulo, sem tomar em conta que o desgaste da economia nordestina começou com a especulação financeira causada pela política de Rui Barbosa e que foi objeto de estratégias de penetração de grandes empresas européias envolvidas com a comercialização do cacau e com a do algodão.
.
No ambiente econômico de após a segunda guerra mundial tornou-se imperativo explicar os processos de atualização do bloco de poder no Nordeste, como parte essencial desse processo na escala nacional. A funcionalidade do sistema de poder do Nordeste no país em seu conjunto ficou evidenciada na participação da região no legislativo e no executivo federais, acima do que se poderia inferir da economia da região. Em seu tempo, a oposição dos governadores do Nordeste à SUDENE – até que puderam controlá-la politicamente – foi uma indicação inequívoca dessa influência. O próprio Celso Furtado foi o principal alvo desse movimento reacionário que o identificou como protagonista de um estilo de mudança que quebraria o sistema de poder prevalecente. Com outras cores, Furtado teria um papel semelhante ao de Francisco Julião e das Ligas Camponesas.
.
No final do período da ditadura a SUDENE tentou retomar sua atividade precípua de planejamento, tentando recuperar a lógica interna do desenvolvimento. Mas, desde o governo Collor, o governo federal entrou completamente no jogo da oligarquia nordestina, perdoando dívidas de usineiros e garantindo espaços na estrutura federal de poder para alguns dos mais claros representantes da aliança da velha estrutura de poder com a atualização do bloco de poder nordestino, facilitando a reconstrução de grupos poderosos na produção canavieira oligopolizada. Nas condições que se desenvolveram desde o golpe de Estado de 1964, tornou-se impossível construir uma compreensão historicamente consistente do Nordeste sem referências diretas aos grupos políticos regionais que se consolidaram desde então.
.
O sistema político nordestino tornou-se o grande aval dos componentes mais retrógrados da política econômica nacional e viabilizador da defesa intransigente de interesses pessoais. As instituições criadas para impulsionar o desenvolvimento da região, como o Banco do Nordeste e a SUDENE ficaram sob controle dos principais grupos de interesse da região ou foram destruídos, como foi o caso da SUDENE, sob pretexto de uma corrupção realmente realizada em outras regiões. Em seus últimos anos Celso Furtado deu declarações que evidenciaram sua completa consciência desse processo
.
A Formação econômica do Brasil (Cultura, 1959) teve a capacidade de demarcar o debate sobre o Nordeste, colocando alguns argumentos decisivos relativos à relação entre um comércio internacionalmente organizado e uma agricultura localmente estabelecida, mas introduzindo algumas simplificações que dificultaram que se percebesse a complexidade social dessa parte do país. Teria que ligar a questão agrária à modernização do capital (Rangel, 1956). O esforço de armar um modelo explicativo da transformação do país deu resultados altamente positivos para explicar a mecânica da região Nordeste, mas teve o efeito contrário de desconsiderar a progressão da complexidade social e técnica da região. O primeiro pressuposto dessa análise, que é de fazer tabula rasa de tudo que havia por aqui antes da invasão ibérica é mortal, justamente porque esse antecedente foi essencial por contraste na determinação do modelo colonial e veio a formar o contraponto do capital no campo. O Nordeste, tal como visto pela Formação é uma presença poderosa que perfilha um nativismo exclusivista, capaz de se colocar como antípoda do Brasil criado por bandeirantes e imigrantes, capaz de ser portador do estandarte ideológico de Gilberto Freyre (2001), que oscila entre uma origem flamenga e uma relação alternativa com o mundo lusitano. Nessa perspectiva, o projeto brasileiro de Portugal gira em torno do açúcar e se reduz às determinações da produção açucareira. Justamente, nesse ponto se precisa de um campo de visão mais amplo, de uma visão em maior profundidade histórica, capaz de situar o Nordeste no processo da formação do império português.
.
Não se pode pensar a formação do Brasil por separado da formação do Império Português e sem reconhecer que o projeto português de poder foi internacional desde seu início e representou um avanço notável quando comparado com o fundamento ideológico dos projetos de poder da Espanha, da França e da Inglaterra. O projeto de poder de Portugal se definiu no século XIV e se consolidou no século XV, combinando um conjunto de mercadorias realizado mediante um sistema de dominação que se organizou com dominação direta e indireta de trabalho, em que a variedade dos dominados era um dado da forma imperial de poder que deveria ser aceito. O Nordeste foi o principal campo de experimentação desse sistema complexo e a formação do sistema produtivo compreende o arranjo de poder que liga a produção canavieira a um determinado sistema escravista, que se completa com as mercadorias que são trocadas por escravos e com as soluções dos problemas de manutenção da população dos excluídos. Precisa-se, portanto, de uma compreensão do Nordeste capaz de dar conta dessa complexidade desse ambiente construído sobre contradições e conflitos. O Nordeste surge como uma região definida por um processo de poder baseado no controle da terra e na capacidade de decidir quem mora na colônia e quem participa dos processos de produção.
.
A colonização cria uma sociedade organizada segundo diferenças sociais radicais do mundo do escravismo, que limitam as possibilidades operacionais do sistema produtivo. O sistema de poder estabelece referências que se desdobram, simultaneamente, no sistema produtivo e no sistema institucional. Nesse sistema de poder o controle do poder judiciário foi mais importante que o controle direto de tropas[4]. O modelo regional se define no plano econômico e no político, combinando a produção açucareira com o controle patrimonial. A prevalência do sistema de poder torna-se clara desde a resistência a corsários e invasores no século XVII até a capacidade de conduzir a substituição da produção manual pela industrializada. Esta complexidade já estaria registrada nos relatórios e discursos do governador Calmon de Góis na década de 1920 e antes ainda, nas Cartas de 1807 [5].
.
O papel da organização internacional do comércio na economia do açúcar já tinha sido descrita por Cairú no inicio do século XIX. A Formação ignorou uma linhagem de análise que vem desde o registro da decadência do sistema colonial aos impasses do velho setor exportador no período do Império, quando a comercialização de açúcar e derivados estava controlada por capitais ingleses que tinham seus próprios interesses organizados nas Antilhas. A perda de posição da economia exportadora sob controle da oligarquia nordestina levou a uma nova configuração da articulação da esfera política com a esfera econômica que permitiu converter o controle local da terra em capital político nacional.
É esse controle da terra – realmente controle de terra e água – que faz a ligação entre formas arcaicas e formas modernas de produção e que representa a continuidade do sistema de poder subjacente no sistema produtivo. Furtado ainda nos fala de abundância de terras no Nordeste, que nesta região é um conceito inseparável da perspectiva de dominação. As terras pareceram ser abundantes porque seus moradores anteriores não contavam. A perspectiva da posse da terra é dada pela economia internacional, que ele atribui à produção canavieira.
.
Ao longo do tempo a formação do sistema produtivo representou uma apropriação de espaço que substituiu o território do semi-nomadismo indígena por diversas formas sedentárias, organizadas como os territórios da produção açucareira, da fumageira, da algodoeira, articulados pela capacidade de apropriação de espaço do comércio internacional, do macrorregional e do local. O Nordeste surge como região econômica e política, formadora de uma regionalidade americana do capital mercantil, capaz de gerar identidades culturais poderosas, capazes de se fazerem representar no movimento geral da formação econômica social e política do país.
.
Seguindo estes elementos numa linha de raciocínio que não choca com a proposta de Celso Furtado, pode-se pensar que o Nordeste da primeira produção açucareira, de 1500 a 1750, foi a região líder de um sistema exportador de porte nacional, em cujo âmbito perdeu espaço para as regiões produtoras das Caraíbas e do norte do Rio de Janeiro. O declínio da produção açucareira no século XVIII refletiu um desinteresse em renovação tecnológica característico da produção escravista que caracterizou o Nordeste em suas diversas atividades. Observe-se que o relativo a concorrência interna foi completamente ignorado pela Formação, que, desse modo, reduz a importância do acontecido no decorrer do período do Império. apesar de haver acordo sobre a importância do desenvolvimento da economia do vale do Rio São Francisco. A questão da concorrência com o vale do Rio Paraíba ficou em aberto na historiografia do Nordeste.
.
.
Os movimentos contraditórios da formação econômica do Brasil
O detalhamento do modelo de interpretação do processo brasileiro leva Furtado a se concentrar nos resultados finais da produção, em termos de formação de capital, desdenhando ou simplesmente passando por alto todo o relativo à organização social da produção. Não se deveria considerar o significado econômico das lutas políticas do século XIX? Cabe esclarecer quanto se trata de modernização e quanto de industrialização. Se reconhecermos que a industrialização e a formação de bancos comerciais surgiram da aplicação de capitais formados no tráfico de escravos e que os usineiros de açúcar representam um dos principais fatores de conservadorismo no Nordeste, essa dimensão econômica e política torna-se indispensável.
.
A industrialização aparece como o principal ingrediente da constituição da economia moderna, mas sem seu componente de luta de classe e sem seu desdobramento em desenvolvimento do capital financeiro. Numa revisão dos fundamentos conceituais da Formação sente-se a falta de uma análise da estrutura de classes no Nordeste, que só apareceria parcialmente com trabalhos de seus colaboradores (Oliveira, 1967) e de alguns pesquisadores estrangeiros (Chilcote, 1991). A configuração da economia provém de relações de poder no reino de Portugal. No final do século XV Portugal tinha reunidos todos os elementos para o fundamento econômico de seu império e parece ser uma simplificação indevida reduzir esse projeto à produção de açúcar, por mais que essa mercadoria fosse o eixo de um sistema de negócios. No modelo português foi fundamental o aproveitamento sistemático do leque de mercadorias introduzidas pelos muçulmanos na península ibérica, onde foi decisivo o papel das feitorias na África. Furtado, portanto, acerta quando focaliza na internacionalidade do modelo, apesar de cair em reducionismo quando formula sua interpretação da estruturação do sistema produtivo no Brasil. Nesse contexto, a configuração do Brasil como região econômica do Império dependia de um circuito de atividades, em cujo âmbito a produção de mercadorias e a solução dos problemas de subsistência se realizavam em combinações direcionadas para a participação no comércio internacional. A produção de mandioca, que era realizada pelos índios, passou a fazer parte da base alimentar que sustentava a atividade exportadora. Outros produtos básicos, tais como milho e feijão, que foram trazidos pelos colonos, vieram a constituir uma dieta básica completada com caça e com a difusão das práticas americanas de preparação de carne seca[6].
.
O desdobramento inevitável dessa abordagem consistiria em ver como o desenvolvimento da economia colonial resultaria em modificações do sistema de poder do capital mercantil. Para o Nordeste, a crise do sistema colonial apareceria na forma de uma perda de posição no sistema do Império, quando a geração de mercadorias exportáveis passava a um segundo plano. O Nordeste do açúcar começava a declinar antes que o sistema escravista se esgotasse. O modelo de análise de Furtado torna-se menos adequado para acompanhar essa transformação e ele separa a Bahia do Nordeste, refletindo um sentimento comum a baianos e pernambucanos, cuja origem vem desde disputas de poder no contexto colonial, adiante reiteradas pela transferência das terras do Além São Francisco à Bahia pelo Império depois da malograda revolução de 1817. Essa separação revelou-se contraproducente no relativo à SUDENE, onde se tornou evidente a necessidade de chegar a um projeto de modernização socialmente desejável para a região em seu conjunto, onde se reconhecessem suas diferenças.
.
A Formação é uma análise do movimento geral da formação do sistema socioprodutivo, que passa por alto o papel dos conflitos sociais na construção do sistema colonial e em seu declínio. No entanto, esses conflitos de interesse foram essenciais e devem ser examinados como parte integrante do projeto de poder representado pela formação do sistema colonial. Não só pela importância histórica das revoluções do Nordeste no século XIX como pelos conflitos sociais, desde Palmares à revolta dos Malês e a Canudos. É uma omissão que teria que ser reavaliada, considerando-se que o foco da análise dos movimentos das exportações levaria, por oposição, a considerar menos importante tudo relativo a produção para uso interno da colônia. Surge daí a necessidade de substituir as análises setoriais convencionais por um tratamento totalizador da formação de capital, onde os setores são simplesmente campos interdependentes de atuação do capital e onde o essencial é distinguir as transformações na composição do capital e seus desdobramentos técnicos. Essa passagem entre a análise setorial e a análise da totalidade do capital não estava disponível ao esquema teórico manejado por Furtado.
.
.
A industrialização e o Nordeste
.
A análise de Furtado do desenvolvimento da economia brasileira está marcada por sua posição frente a indústria. A indústria surge como uma mutação do capital que se separa das manufaturas tradicionais na região [7] e que substitui produção artesanal. No relativo ao Nordeste, constitui uma simplificação surpreendente, tanto por ignorar o pioneirismo da indústria nordestina no Brasil como por não enfrentar o relativo às transformações sociais induzidas pela formação de um operariado em diversas capitais do Nordeste (Castellucci, 2004). A falta de uma análise de relações de classe nesse caso é decisiva, porque impede que se vejam os efeitos da atualização do bloco de poder no Nordeste na própria oposição que se formou à SUDENE. Furtado vem de uma compreensão keynesiana do funcionamento da economia. Nessa perspectiva, viu a indústria como um setor da produção constituído de um conjunto de fábricas, que se forma por separado da agricultura e em contraste com ela e não como um campo das relações inter-setoriais que se identifica por suas inter-relações no sistema produtivo em seu conjunto. Nessa perspectiva, a indústria seria um conjunto de fábricas e o comportamento da indústria seria o desempenho das fábricas tomado em forma agregada. A teoria do desenvolvimento de origem keynesiana não distinguia entre a análise consolidada das fábricas e a análise das empresas, pelo que não via a indústria como um reflexo do movimento geral do capital onde as opções industriais e as dos demais setores são interdependentes.
.
Esse viés significa que se focaliza no ambiente técnico da indústria e não no contexto histórico e econômico da reprodução do capital. Tal como na classificação oficial das estatísticas da indústria, aceita-se como indústria uma série de fábricas que se distinguem umas das outras apenas por capital contábil, número de operários etc.. Não se vêm essas fábricas como integrantes de empresas, senão como eventos que podem ser julgados isoladamente, tal como por critérios de relação custos/benefícios. Desse modo, é possível pensar que a indústria poderia ser um campo dócil perante iniciativas públicas de promoção de investimentos, que foi a presunção que sustentou as políticas de distritos industriais. Isso exclui a lógica da industrialização da produção canavieira, que está indissoluvelmente ligada à primeira industrialização do Nordeste na segunda metade do século XIX e que hoje protagoniza uma notável modernização. Exclui, também, o fato de que a industrialização se realiza mediante a entrada de novas linhas de produção ligadas a novas soluções de organização social da produção.
.
Por isso, o tratamento da industrialização é o principal ponto de conflito entre a análise histórica propriamente dita e a análise histórica da política econômica. Situado na perspectiva moderna do após guerra, A industrialização foi identificada pela teoria do desenvolvimento como o componente essencial da superação do subdesenvolvimento. Mas também foi objeto de uma simplificação em supor que seria alcançada mediante decisões de governo, independentes da lógica de reprodução do capital. Furtado adere à visão simplificadora da formação da indústria no Brasil que toma 1930 como ponto de partida e ignora os movimentos do capital que se encaminharam para a indústria de transformação desde meados do século XIX. Aparentemente Furtado ignorou a complexidade da primeira etapa de industrialização, que fez, inclusive, com que o planejamento estadual da década de 1950 e o Banco do Nordeste se ocupassem tanto em recuperação de uma indústria de bens de consumo duráveis em operação há décadas[8] . É a diferença entre as tendências do capital à indústria e as opções dos governos de tomar iniciativas para industrializar a economia. No entanto, se colocamos os problemas de industrialização no contexto da economia internacional, torna-se evidente que se trata de quadros de opções dentro das quais se movem os capitais integrados nas economias periféricas.
.
Pensar em termos de grande capital e de controle financeiro da produção leva a uma outra leitura do processo do Nordeste, onde a reprodução do poder político é parte essencial da constituição do poder econômico. Esse é o modo pelo qual podem ser explicados os movimentos de atualização do bloco de poder e de construção de novos pactos de interesse entre os consórcios de grandes capitais operando na região e a estruturação do poder político.
.
Numa visão em retrospectiva da industrialização e das políticas industriais no Nordeste concebidas na década de 1950, surge que há duas grandes vertentes de política, em que uma se remete a proteger o parque industrial existente, portanto, que são as de manter e atualizar estruturas produtivas já existentes, em sua maioria de bens de consumo, e de criar novos estilos de produção industrial e industrializada, que surgem como negação das formas de acumulação, que foram empreendidas no início do século XX. A proposta de industrialização da SUDENE pautou-se ainda pelo velho estilo de atrair indústrias e de apoiar projetos novos de velhas empresas regionais, tornando-se uma contradição com os delineamentos globais de política regional, que clamavam por uma reestruturação da economia regional em seu conjunto. A falta de uma articulação significativa entre a política industrial e as políticas de desenvolvimento rural seria o principal ponto fraco da política de desenvolvimento da SUDENE, que jamais reconheceu legitimidade dos movimentos sociais de reivindicação rural. Contra toda expectativa, a SUDENE dedicou-se a uma política industrial baseada em fomento de projetos individuais, que só foi revisada no governo Figueiredo, quando houve tentativas por parte do Ministério de Planejamento de focalizar em complexos industriais, avançando numa visão sistêmica do problema. A única grande exceção de fato da velha política industrial foi o complexo industrial de Camaçari, que reeditava, como proposta técnica, a primeira versão do Centro Industrial de Aratu. A visão dicotômica da indústria como antípoda da agricultura representou uma política de favoritismo de velhas empresas regionais, de que a SUDENE não conseguiu se separar.
.
.
Bibliografia

ALMEIDA, Rômulo, Nordeste, desenvolvimento social e industrialização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.
ARAÚJO, Tatiana Brito de, Os engenhos centrais e a produção açucareira no Nordeste, Salvador, FIEB, 2002.
BARICKMAN, B., Um contraponto baiano, São Paulo, Civilização Brasileira, 2003.
BOXER, Charles, A idade de ouro do Brasil, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000.
CASTELLUCCI, Aldrin, Industriais e operários numa conjuntura de crise, 1914-1921, Salvador, FIEB, 2002.
CHILCOTE, Ronald, Transição capitalista e a classe dominante no Nordeste, São Paulo, Edusp, 1991.
FERNANDES, Florestan, A revolução burguesa no Brasil, São Paulo, Globo, 2006.
FIEB, Cartas econômico-políticas sobre a agricultura e comércio da Bahia, Waldir Oliveira (coord.), Salvador, 2004.
FOUCAULT, Michel, Segurança, território, população, São Paulo, Martins Fontes, 2008.
FREITAS, Alencar Soares de, Notas sobre a indústria nordestina desde sua origem até o ano de 1960, Revista Econômica do Nordeste, n.15, Fortaleza, 1984.
FREYRE, Gilberto, Interpretaçào do Brasil, São Paulo, Ed. Schwarcz, 2001.
FURTADO, Celso, A formação econômica do Brasil, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1959.
___________________ A economia brasileira, Rio de Janeiro, A Noite, 1954.
----------------------------- A operação Nordeste, Rio de Janeiro, ISEB, 1959.
GUIMARÃES NETO, Leonardo, Introdução à formação econômica do Nordeste, Recife, Massangana, 1989.
HIGGINS, Benjamim, Economic development, W.W.Norton & Company, N.York, 1968.
LAPA, José Roberto Amaral, A Bahia na carreira da Índia, São Paulo, Brasiliana, 19...
MAURO, Fréderic, Portugal e o Brasil no Atlântico,
MELLO, Evaldo Cabral de, O negócio do Brasil, Rio de Janeiro, Topbooks, 2003.
MÉSZAROS, István, O poder da ideologia, São Paulo, Boitempo, 2004.
OLIVEIRA, Francisco de, Elegia para uma re(li)gião, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
PEDRÃO, Fernando, A competitividade da indústria no Nordeste, Revista Econômica do Nordeste, n.15, Fortaleza, 1984.
--------------------------- Criatividade e racionalidade na obra de Celso Furtado, ensaio apresentado em Congresso em Homenagem a Celso Furtado, João Pessoa, 1992.
---------------------------- O Recôncavo baiano na origem da indústria de transformação no Brasil, História econômica da Independencia e do Império, Tamás Szmrecsányi e José Roberto do Amaral Lapa (org.), São Paulo, Hucitec, 1996.
---------------------------- O novo Nordeste e a ordem mundial, Reflexões de economistas baianos 2005, Osmar Sepúlveda e Fernando Pedrão (org.) CORECON-Ba., Salvador. 2005.
PREBISCH, Raul, La obra de Prebisch en la CEPAL, Adolfo Gurrieri (sel.) 2 vols. México, Fondo de Cultura Económica, 1982.
PRESIDÊNCIA DA REPUBLICA, Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste, Rio de Janeiro, 1959.
RANGEL, Ignacio, A questão agrária brasileira, Recife, CONDEPE, 1957.
SCHWARTZ, Stuart, Burocracia e sociedade no Brasil colonial, São Paulo, .Editora Perspectiva, 1979.
---------------------------- Segredos internos, São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
TAVARES, Maria da Conceição (org.) Celso Furtado e o Brasil, São Paulo, Ed. Fundação Perseu Abramo, 2001.
* Doutor e Docente Livre pela Ufba. Diretor geral do Instituto de Pesquisas Sociais.
[1] Em 1357 Fernando III de Castela invadiu a Andaluzia com o lema Um povo, uma língua, uma religião, duzentos anos antes que se estabelecesse a Inquisição.
[2] Ver o excelente estudo de José Roberto Amaral Lapa sobre A Bahia na carreira da Índia, que descreve essa função da Bahia no sistema comercial mundializado criado por Portugal.
[3] A continuidade do bloco de poder na política nordestina favoreceu o aparecimento de novos ricos, quase sempre beneficiados por vantagens de mercado e contratos com o governo, mas esse movimento não contradiz senão ajuda a explicar a atualização do sistema de poder. Os mecanismos de reprodução política do poder econômico certamente se aperfeiçoaram durante o regime militar, mas ganharam força na “nova” República, mediante mecanismos de aliança regional que se tornaram funcionais ao desenho político nacional. O fundamento dessa nova forma de poder vem sendo a articulação de uma aliança urbana com grandes empresas internacionalizadas com o controle político das bases municipais do sistema. As análises superficiais da mídia têm confundido esta composição política com coronelismo, que é uma modalidade rural de poder há muito superada.
[4] Cabe ver o trabalho de Stuart Schwartz sobre o papel do controle da burocracia na formação do sistema de poder político no Brasil colonial.
[5] Ver Cartas econômico-políticas sobre a agricultura e comércio da Bahia, Salvador, Fieb, 2004.
[6] O termo charque consagrado no Brasil é quéchua, do altiplano andino, e significa carne seca de llama. A origem espanhola na difusão do termo charque é indiscutível e refere à relação indireta com o altiplano andino através da Argentina. O nome ibérico desse produto é o espanhol tasajo , que nunca foi usado no Brasil. A expressão cecina , de significado mais amplo, ficou restrita a pequenas áreas da América do Sul e tornou-se mais difundida na Mesoamérica. O uso de carne dessecada foi uma solução para as deficiências de distribuição de alimentos característica das colônias americanas, no ambiente que consagrou o consumo de bacalhau seco importado por não organizar a pesca para suprir a demanda de alimentos.
[7] Em diversos pontos do Nordeste, desde Juazeiro do Norte a Campina Grande, Garanhuns, Feira de Santana, Itabaiana, Propriá, surgiu uma produção coletiva que se situava entre grande artesanato e manufatura, que foi capaz de produzir mercadorias tecnicamente sofisticadas, como armas de fogo e relógios, e calçados e roupas em grande quantidade, que prosperou entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX. Essas atividades de pequenos capitais, que representaram uma importante fonte de emprego urbano, foram olimpicamente ignoradas pelos programas públicos de fomento da indústria. Pode-se afirmar que o financiamento da indústria no Nordeste sempre se direcionou aos grandes capitais locais.
[8] Essa situação ficara claramente demonstrada no planejamento econômico estadual, que já era praticado na Bahia, em Sergipe e em Pernambuco. Os documentos da CPE (Bahia), do CONDESE (Sergipe) e do CONDEPE (Pernambuco) dão testemunho de uma tentativa de política industrial que encontrou eco na atividade da Carteira Industrial do Banco do Nordeste durante a década de 1950 e que não poderia ser ignorada pelo planejamento industrial da SUDENE. Entretanto, já o planejamento estadual identificava os objetivos de uma industrialização seletiva, que foram abandonados depois do golpe de Estado de 1964. Prevaleceu a política de atração indiscriminada de indústrias, que serviu para que empresas que estavam em dificuldades no sudeste se acolhessem às vantagens do Nordeste.Desde então, tanto os estados do Nordeste como os órgãos federais na região passaram a aprovar projetos apenas por sua rentabilidade direta. O Banco do Nordeste deixou de ser um banco de desenvolvimento para limitar-se a funções de apoio a todo tipo de empreendimentos rentáveis, com notável concentração em pequeno número de usuários. A crítica desse modelo de fomento seguiria no sentido oposto ao do governo federal, que passou a realizar políticas assistencialistas na região em geral desde o início da “nova” República.
.
este artigo foi publicado no livro "Celso Furtado e a Formação Econômica do Brasil" pela Ordem dos Economistas do Brasil

terça-feira, 28 de julho de 2009

A CRISE DO CAPITALISMO CENTRAL

Realidade histórica e percepção da crise

O capital triunfante, que se sentia seguro sobre a vitória política do neoliberalismo, não contabilizou os riscos que acumulava com a combinação mortífera de uma rentabilidade escritural montada em especulação, com uma propensão ao consumo que há muito deixou de ser marginal. Os deslocamentos na composição do sistema mundial de poder, que já se tornaram incontestáveis, representam os sintomas de uma contradição na base da sustentação do sistema econômico globalizado, apareceram no endividamento generalizado dos sistemas nacionais e no aumento exponencial dos custos de energia. A cena da crise se montaria sem que seus personagens percebessem sua profundidade.

A crise não é um fenômeno técnico, é um processo social, econômico e político, que envolve responsabilidades que devem ser identificadas e culpas que devem ser assumidas. Esta crise surge da voracidade do capital especulativo, que é animada pela autorização tácita para especular de modo incontrolado pela sociedade. A expressão crise aqui se refere às turbulências do sistema capitalista de produção, que não podem ser confundidas com crises bíblicas nem com desastres naturais de esfriamento e ou de aquecimento da calota polar. A noção de crise está ligada ao modo de transformação da sociedade do capital que persegue fins não confessos (Coletti, 1978). Por isso, a explicitação da relação entre fins e meios configura um embate ideológico.

A divisão entre os que acham que as crises são incidentais ou que são orgânicas ao sistema capitalista de produção sempre foi um corte essencial da análise da economia mundial. De um lado, está a perspectiva histórica e de outro lado estão os neoclássicos e neo-schumpeterianos. A suposição de que as crises são incidentais, ou que ela são fruto de deficiências circunstanciais de gestão do capital, é que permitem sustentar um discurso oficial que atribui esta grande crise a incompetência bancária ou a perda de controle do endividamento dos grupos médios de renda sem jamais reconhecer que haja desvios de conduta. Perdem-se de vista, por descuido ou por opção, a complexidade do processo da crise e a combinação de fatores que se encontra em seus fundamentos.

A visão em perspectiva histórica do processo da crise no desenvolvimento da produção capitalista revelou como a teoria dos ciclos econômicos constitui um divisor de águas entre as teorias da economia nacional e as do capital (Coletti, 1978), assim como uma divisão entre as hipóteses teóricas de ciclos do sistema produtivo e de ciclos dos negócios. O aumento de complexidade do sistema e da volatilidade do capital, torna necessário examinar como se coloca historicamente esta crise e como ela é percebida pelos diversos participantes da economia mundializada, tanto pelas nações como pelos grupos privados. A hipótese básica escolhida é que a inserção na esfera efetivamente globalizada é desigual e variante, entre os componentes do bloco hegemônico e os que integram as diversas periferias com suas condições desiguais de industrialização e urbanização.

Ao reconhecer que há um centro e uma pluralidade de periferias no sistema mundial do capital, com diversos modos de interação, somos levados a entender que precisamos de uma reflexão sobre o modo de funcionar da sociedade do capital, que nos mostre como esta crise é gerada e como se transmite. Para alcançar esse objetivo, precisamos de uma reflexão sobre o capitalismo central, através de seu centro hegemônico que é a economia norte-americana, com seu modo de se reproduzir e de participar da economia mundializada. A crise hoje aparece como uma disfunção da economia norte-americana que se projeta sobre o mundo, mas não como um movimento próprio da reprodução do campo mundializado. A articulação do poder econômico e do político que comanda o mundo globalizado resiste a reconhecer que se trata de uma crise do processo do capital, mas age em função desse dado, alterando o controle do capital financeiro, desprivatizando o controle de instituições financeiras e estatizando bancos. O contraste entre o discurso e a ação fica mais claro quando se vê que o modelo de centralização do poder econômico é mantido: apoio a bancos antes que a pessoas.

Essa desordem segue sua forma inicial, e se propaga no componente europeu do bloco hegemônico como uma brecha no setor imobiliário, quando nos EUA já atinge camadas mais profundas da formação de crédito. Há um problema específico da conexão entre os mecanismos internos da reprodução do sistema e os mecanismos que respondem pela articulação da esfera mundializada. No plano interno há uma distância entre as aplicações de recursos de poupança, que têm aversão a risco e buscam renda garantida e as aplicações dos setores em expansão e do capital financeiro especulativo, que tratam de maximizar renda e têm que aceitar riscos. Esta é uma base da crise do setor imobiliário, que é onde esses dois tipos de aplicações se encontram. No plano internacional os movimentos de capital financeiro se realizam sobre informações reflexas de desempenho de mercados, que são agregações de representatividade variável de desempenho de empresas.

Não há dúvida sobre a origem interna desta crise, que foi apresentada ao mundo como originada no setor imobiliário. Mas, sem desmerecer da força desse argumento, resulta-nos impossível separá-lo do modo de reprodução do centro hegemônico e esta, sem dúvida, é uma combinação de elementos econômicos, institucionais, culturais e militares. A crise financeira combina sempre uma crise de confiança, que é subjetiva, com um desajuste entre propostas de produção e condições de demanda, que é uma situação objetiva. O fundamental é verificar como o sistema processa a crise e como sai dela. As crises são tão complexas como o sistema produtivo é complexo e tão rápidas como ele opera. A questão agora é que a crise de confiança se encontra com situações concretas de desajuste entre as condições de risco do capital tecnicamente avançado e as condições de segurança necessárias para os pequenos capitalistas.

As manobras do capital financeiro, entre aplicações em mercados em expansão – comparadas com aplicações em mercados estagnados ou de baixa rentabilidade – acabou por comprometer os controles técnicos das margens de risco, na prática aumentando as vantagens do grande capital que tem melhores condições de tratar com condições variáveis de riscos. Essa perda de controle sobre a administração dos riscos permitiu que as grandes empresas aplicadoras de dinheiro se excedessem em aceitar riscos que já eram compatíveis com os rendimentos daqueles que contrataram hipotecas e que não poderiam pagá-las. Não cabe acusá-las de especuladoras porque sua função no sistema é especular.

As informações relativas a esta crise, que se apresentou na forma de uma crise interna dos EEUU que se expande ao mundo do capitalismo através do mecanismo da bolsa de valores, mostraram a força de mecanismos de conexão entre os fundamentos da economia interna da nação hegemônica e o modo de funcionamento da esfera globalizada. O custo da hegemonia está no centro da questão e compreende a manutenção de padrões de consumo com componente suntuário cada vez maior e os custos de sustentação do poderio militar. Não é por acaso que o Império sinaliza uma retirada ordenada do Oriente Médio, adotando medidas de compensação na defesa de Israel.

Neste contexto, a opção pela abordagem histórica é imperativa. Na construção de uma análise separada dos preconceitos da ortodoxia marginalista é preciso, primeiro, delimitar o poder explicativo dos argumentos “normais” ou ortodoxos, ou colocá-los diante do que são novos argumentos decisivos na crítica da atual hegemonia. Assim, cabe destacar o custo social cumulativo do grande consumo, isto é, a combinação de consumo de luxo com quantidades de consumo incontrolado. É o consumo dos grupos de alta renda, que está concentrado nos países mais ricos, especialmente nos EEUU. Esse grande consumo civil não parou de crescer desde o fim da Segunda Guerra Mundial, aceitando-se como um dado necessário da sustentação da produção capitalista, sem admitir que ele represente um desgaste do sistema de recursos físicos. Se os usos maciços de combustíveis no inverno são irrecusáveis, o mesmo não pode ser dito da potência dos automotores e do uso incontrolado de ar condicionado. O argumento sobre o grande consumo está ligado à lógica fundamental da sociedade de consumo. (Baudrillard, 1968), mas atinge um problema muito mais profundo da lógica da reprodução do capital nas sociedades avançadas, onde grandes áreas de consumo foram afetadas por modificações das condições materiais de vida que parecem mais sólidas do que realmente são. O aparecimento de uma visão crítica desse viés do processo do capital pode ser reconhecido como uma manifestação contraditória de uma consciência oriunda de posições de classe que caracteriza as camadas mais ricas da estrutura social. O deslocamento de identidade de que nos fala Hall(2006) resume uma fragilização da situação de pertenência que se encontra na identidade nacional entre os latino-americanos em geral, mas que compartilha raízes regionais mais fortes entre os europeus ou raízes etno-culturais entre os norte-americanos. O grande problema da mobilidade social revelou aspectos descuidados dessa volatilidade da condição de identidade, que se projeta na atividade política em geral e na desconfiança apriorística de tudo que se identifique com ideologia. As atitudes perante a questão do ambiente são as mais evidentes e que revelam uma revolução do consumo que deve ser examinada em sua totalidade junto com condições contraditórias de solidariedade dadas por um individualismo gerado por essa perda de identidade.

Por causas naturais

Curiosamente, o reconhecimento da importância dos processos naturais na economia deveu-se ao cientificismo do fim do século XIX, que advogava o controle da natureza, antes que à consciência da ecologia, quando ainda não se incorporava o conceito de ecologia. A questão hoje consiste em saber como se insere a visão das causas naturais na construção de um pensamento cientifico posterior à inclusão dos conceitos de complexidade e de caos, quando se entende que o sistema socioprodutivo é atingido por processos culturais que se apresentam como imprevistos, mesmo quando sua aparente incerteza se deve a que eles são parte de outras escalas de tempo não controladas como é o caso do degelo da calota polar ou da corrente de El Niño.

Os fundamentos naturais das crises econômicas tiveram certa projeção no passado, quando se pretendeu formar uma visão integrada dos ciclos do sistema produtivo (Haberler, 1958), que não se limitava ao horizonte dos negócios que depende de uma visão microeconômica do problema (Schumpeter, 1961). Se bem que esses cuidados com os fundamentos naturais das crises aconteceram antes as análises de impacto ambiental ganhassem a acuidade que têm hoje, eles tiveram a virtude de mostrar a necessidade de estabelecer padrões de raciocínio compatíveis com o reconhecimento de que a sociedade de hoje funciona com padrões de complexidade crescente. Surpreende, portanto, que os efeitos dos furacões Katrina e Ike não tenham sido reconhecidos entre as causas da irrupção da crise na economia dos EUA. A economia norte-americana tem estado submetida a processos naturais violentos como os furacões, porém estes, especificamente, atingiram o sistema de produção de petróleo e derivados.

A não consideração desses elementos reforça a crítica de que há uma simplificação indevida na análise das causas da crise. Como se os ciclos pudessem se formar apenas no sistema financeiro. Ciclos econômicos e crises teriam que ser tratados numa perspectiva sistêmica, onde as noções de processo e de totalidade são essenciais (Marchal, 1959). A subordinação da noção de crescimento à de tendências inerentes a estruturas e historicamente situadas seria um requisito necessário a uma análise econômica realista (Nurkse, 1961). Hoje está claro que o processo do pensamento keynesiano, que se apresentou como mais avançado que o velho marginalismo de Jevons e Marshall, foi um aluno deles, que se envolveu em reducionismo monetário. A corrente neoclássica hoje atingida pelas práticas intervencionistas dos Estados ricos, representa uma total incapacidade para colocar a análise econômica em termos de tempo real. Não surpreende, portanto, que a percepção da crise tenha se restringido ao circuito imediato das transações financeiras e tenha descartado os efeitos dos processos naturais.

Precisa-se agora recuperar o significado das causas naturais na formação de ciclos a partir da perspectiva social. A influência das causas naturais deve hoje ser colocada em um quadro de aumento proporcional dos efeitos indiretos dos processos naturais no sistema produtivo em seu conjunto, portanto, com efeitos que se prolongam no tempo, seguindo trajetórias desiguais. O modo mais razoável de observar esses fenômenos parece ser o de registrar os pontos de impacto e acompanhar o desdobramento dos efeitos secundários segundo se formam impactos derivados combinados que geram novos rumos da expansão ou da contração do sistema produtivo. Esta abordagem de análise de circuitos, que tem sido usada por biólogos e em sua contribuição à análise da ecologia (Okum, 2006) em geral, tem um ponto de especial interesse, que é o cruzamento de efeitos meramente objetivos com a subjetividade dos processos sociais. Como as crises econômicas são sempre deflagradas através de mudanças coletivas de comportamento, é preciso colocar essas mudanças de comportamento como leituras culturalmente definidas de dados objetivos dos processos naturais.


A revolução do consumo

O desenvolvimento do sistema capitalista de produção envolve uma transformação do consumo, em que há uma distribuição do consumo atual possível e uma apropriação da capacidade de consumir realimentando o mecanismo social da desigualdade. O problema, diz Conceição Tavares, “da forma assumida pelas relações de produção com sua historicidade e seu desenvolvimento contraditório, fica reduzido a uma luta pela distribuição do excedente, que termina numa luta pela distribuição do consumo”
[1]. O que se passa aqui a denominar de revolução do consumo é um movimento geral de aumento de quantidades e de ampliação da variedades das mercadorias consumidas, que compreende as transformações do consumo dos segmentos mais ricos da população mundial e a inclusão de massas, à condição de consumidores principalmente nos países periféricos ascendentes. Vários autores marcaram o grande choque cultural que representa a chegada no ambiente do consumo aparentemente ilimitado dos grupos de maior renda mesmo em países periféricos como a Índia, a Rússia e o Brasil. A revolução do consumo não pode ser reduzida aos termos de consumo individual, por mais importante que ele seja, simplesmente porque transcende a esfera das pessoas, ao representar o descobrimento de um imperativo de interesse coletivo, que aparece em temas tão variados como os códigos de trânsito, as leis contra poluição sonora ou a legislação de proteção de mananciais. O condicionamento coletivo do consumo individual se estende aos diversos níveis de renda, apesar de que obviamente diminui progressivamente para os grupos de maiores rendas.

O fundamento ideológico da revolução do consumo provém de que ela compreende as duas etapas de difusão de padrões e de desconstrução e superação de padrões, tal como acontece com as populações superurbanas
[2] , que procuram estilos de vida que dispensam o automóvel próprio e os trajes formais. Em sua essência, a revolução do consumo é um movimento que converte cultura em economia, mas que opera de modo contraditório com a acumulação. A centralidade do consumo cria padrões de valor que não são compatíveis com a realidade da formação da renda disponível. O endividamento tornou-se parte essencial do funcionamento do sistema, onde se combinam o endividamento externo das nações, o endividamento interno dos governos, o das empresas e o das pessoas.

No ambiente econômico modulado segundo os modos culturais do grande capital, a progressão do consumo se separa por completo dos horizontes dos grupos médios de renda, guiando-se mais por referências de símbolos restritos de classe que por eficiência do consumo. A difusão dos meios de comunicação permitiu que as maiorias tomem conhecimento de padrões de consumo que não podem sequer ver, mas que se tornam referências idealizadas nas novelas e nas revistas de modas. É preciso, portanto, distinguir a revolução do consumo dos grupos de rendas elevadas da revolução do consumo das populações numerosas dos grandes países ascendentes. Esta é a revolução do consumo, que se realiza com a incorporação progressiva de grandes números de pessoas que se tornam consumidores, com perfil de consumo inicialmente muito simples, mas com extenso impacto quantitativo e rápida diversificação.

A nova revolução do consumo periférico ascendente atinge o sistema da economia mundial induzindo os produtores a reprogramarem suas metas e planos de produção, portanto, atingindo o modo de expansão do mercado mundial. Sinteticamente, a revolução do consumo é uma força transformadora da economia mundializada que cruza com outro elemento fundamental de uso de recursos, que é a despesa militar. Nas décadas de 50,60 e 70 os principais movimentos da revolução do consumo aconteceram por conta dos EUA e da Europa ocidental. Desde então cresce o consumo asiático liderado pela China e aparece o consumo das novas nações árabes ricas e da América Latina. Há um componente de despesa militar dos diversos países, segundo o papel que cada um deles desempenha em escalas regionais de poder e a despesa que é determinada pela hegemonia econômica, política e militar. O custo da hegemonia está hoje no centro da questão, porque a nação hegemônica realiza despesas imensas para manter sua posição e deixa de dispor de meios para transferir os custos das guerras para outras nações. A referência geral de que as despesas militares norte-americanas se comparam com as das demais nações em seu conjunto indica a insustentabilidade dessa situação em médio e longo prazo, com uma previsão, quase inevitável, de uma redução relativa do poder econômico e militar dos EUA frente a nações de grande porte e melhor dotadas de recursos energéticos.

Percebem-se dois modos de lidar com essas questões, que são os de comparar o peso das despesas com o esforço bélico na despesa nacional tota e de comparar as despesas bélicas com as de educação, onde estas sejam representativas do campo social em seu conjunto. Em ambos os casos são implicações de uma distância crescente entre a reprodução social em geral e a reprodução do capital integrado aos mecanismos diretos de poder. Há uma questão relativa aos mecanismos do capitalismo central hegemônico e aos do capital sub-hegemônico ou adstrito ao poder econômico, mas sem poder militar, que é o caso da Europa ocidental. A União Européia não poderia montar sua nova lei de imigração nem adotar um colonialismo sutil pós-colonial se não estivesse amparada pelo poderio bélico norte-americano. Inversamente, pode-se dizer que a crise do capitalismo central tende a por a Europa numa posição defensiva e a mudar suas políticas em relação com as nações periféricas. Afinal, não é por acaso que a atual política de pilhagem de recursos humanos qualificados vem junto com políticas diferenciadas país por país nem que as políticas de financiamento revelam um movimento de expansão na América Latina.


Os mecanismos da produção social da crise

“O mercado que se auto-regula e que penetra completamente na sociedade não passa de utopia da sociedade burguesa” Agnés Heller

A crise atual assusta por suas proporções e por se desenvolver por imprevistos no coração da nação hegemônica. No entanto, não deveria surpreender tanto, se considerados os sintomas de tensões sem solução no modo de reprodução do capital em seu maior centro de financiamento. À parte do fato de que o sistema do capital opera mediante combinações de capitais que têm diferentes condições de inserção no mercado de dinheiro, há diferenças de velocidade de circulação que desviam o dinheiro capital para onde ele pode circular mais rápido. As revoluções tecnológicas do período de 1960 a 1980 acentuaram essas diferenças e fortaleceram a posição dos mercados em expansão na condução dos rumos do capital. O caráter cíclico fundamental da reprodução do capital, que já mostrava alterações de seus intervalos de tempo e de duração desde a Guerra da Coréia, mostrava-se agora modificado pelas novas diferenças entre economias nacionais em expansão e economias quase estagnadas. As grandes corporações e as empresas mais criativas passaram a se deslocarem mais na direção dos mercados em expansão, o que significa se transferirem mais para a China, Rússia, Índia e Brasil, em parte subordinando a reprodução do capital europeu a esses mercados e em parte decretando a necessidade do mercado norte-americano de reagir de modo satisfatório para absorver essa nova situação. A economia norte-americana concorre com a China pela aplicação de seu próprio capital, onde há diferenças de prazos e de retornos entre aplicações com diferente capital social básico e diferentes condições de remuneração do trabalho. Há, portanto, uma novidade no quadro da formação do ciclo, no que ela se gesta na relação entre os integrantes do capitalismo central e em sua relação com as periferias do mundo econômico, onde passam a ser determinantes as diferenças de condições concretas de reprodução do capital, que estão representadas pela relação orgânica entre os mercados em expansão e os mercados semi-estagnados.

Assim, sob condições diferenciadas de remuneração dos capitais aplicados, mudam as condições de articulação entre a produção de bens de consumo e a de bens de capital, modificando-se a velocidade de reposição de equipamentos em cada um desses dois departamentos, ,portanto, mudando as condições sociais da formação do ciclo. Parte-se do mesmo ponto de sempre, de que a produção capitalista é um processo cíclico em espiral, que se realiza através de mudanças irreversíveis na composição do capital e onde coexistem diferentes tipos de movimentos cíclicos e onde mudam as condições técnicas da formação dos ciclos.

A explicação dessa tendência incoercível à crise descansa em duas observações principais que ligam a necessidade de reproduzir cada vez mais capital acumulado com os custos dessa acumulação em termos de energia, onde essas duas condições se refletem em momentos de riscos do sistema como um todo. Retomando um argumento fundamental de Adam Smith, vale reconhecer que a acumulação entranha um mecanismo cumulativo do capital, que tem os dois aspectos de tornar necessário encontrar oportunidades para aplicações compatíveis com a posição do capital já acumulado; e de conseguir que as novas aplicações não estejam submetidas a riscos maiores que aqueles aderidos aos investimentos já iniciados.

Distinguiremos as condições ambiente de risco da progressão de riscos de cada empreendimento; e entenderemos que o perfil dos riscos muda quando as decisões sobre riscos saem do interior das empresas e se tornam parte das regras de participação em mercado. Por exemplo, as empresas passam a conviver com demandas de incluir trabalhadores que têm direitos mais caros que os da média e trabalhadores portadores de doenças transmissíveis. A sustentação da capacidade produtiva, isto é, a reprodução simples do sistema produtivo pressupõe a possibilidade de situações invariantes de riscos. Mas, o sistema jamais se reproduz sem alterações tecnológicas, pelo que na prática a reprodução sempre incorre em riscos, já que a abertura de novas oportunidades de aplicação de capital tende a não acompanhar a necessidade de aplicação. Este mecanismo, incorporado na formação do capital de alta tecnologia, faz-se cada vez mais presente nas economias mais avançadas. Observamos que a economia norte-americana conquistou a função principal de centro financeiro mantendo sua posição de principal mercado industrial, apesar de ter erodido sua capacidade de concorrer no mercado industrial e por seus custos mais elevados que os das economias industriais ascendentes. Essa é, justamente, a grande questão que nos impede de usar a velha divisão entre centro e periferia, quando se trata de que a China, a Rússia e a Índia progridem como economias industriais e com vantagens de custos sobre os EEUU, invertendo a posição de periferia exportadora de matérias primas para a de periferia usuária de matérias primas. A contradição de interesses entre situações de periferia surgem conflitos de interesse no campo da periferia, cuja substância é o controle, direto e indireto de trabalho. São conflitos que aparecem como interesses nacionais, mas cujo conteúdo de relações de classe não pode ser ignorado.

Por isso, para avançar nesta indagação será preciso estabelecer algumas hipóteses iniciais descritoras do modo atual da sociedade do capital avançado. São duas hipóteses que se combinam. A primeira delas é que os custos da reprodução do sistema, representados pelo grande consumo e pelas despesas militares, tornaram-se excessivos, frente as condições de remuneração do capital, nas economias do bloco hegemônico. A segunda hipótese, ligada à primeira, é que a conta de energia, em seu sentido mais amplo, compreendendo usos diretos e indiretos de energia, torna-se excessiva para o bloco hegemônico. De serem válidas estas hipóteses, por conseqüência, será preciso admitir que o desempenho energético da economia será decisivo na determinação de sua capacidade de crescer sem entrar em processos de bloqueio e crise.

A conta de energia sintetiza o desequilíbrio orgânico do sistema, cuja reprodução simples incorpora custos de substituições e ampliações da base produtiva, que comprometem a constituição do fundo de investimento. Manter a capacidade produtiva requer custos crescentes. A realização da reprodução simples acarreta custos progressivamente crescentes, que surgem do esforço necessário para garantir insumos que se tornam escassos e mais caros. A ultrapassagem tecnológica que aparece nos setores que mantêm mediante renovação, tais como a informática, a biotecnologia e a nanotecnologia, também acontece em setores ditos tradicionais, tais como a indústria de vestuário e a de alimentos. A rigor, a reprodução simples tal como é definida como referência de análise por Marx é uma situação hipotética, já que em caso algum o sistema se reproduz exatamente como era sem alteração alguma. Essa inércia da reprodução simples – que aparece na forma da teoria do acelerador de Harrod – torna-se uma força essencial na dinâmica do sistema, que será dinâmico até para se manter estático. Em síntese, a reprodução simples se torna mais incerta à medida que os sistemas se tornam mais complexos.


Fundo de investimento, garantia de demanda e controle de riscos

A noção de fundo de investimento impõe-se como um modo de explicar a disponibilização de recursos no sistema produtivo para atender àquelas necessidades da formação de capital identificada com a reprodução do sistema socioprodutivo. O fundo de investimento se constitui do valor que é extraído do consumo por conta do poder de decisão do capital sobre a composição dos usos da renda na sociedade em seu conjunto, isto é, reconhecendo que o capital tem o poder de afetar o consumo através de sua capacidade de comprimir a taxa de salário.

As diversas evidências históricas de que os movimentos de acumulação mais intensa coincidem com compressão da renda do trabalho desenham um ambiente social de produção em que a acumulação se realiza mediante movimentos de aumento da taxa de mais valia e não só de continuidade das condições de exploração. Objetivamente, o fundo de investimento descreve a capacidade das instituições controladoras de capital de se apropriarem de uma proporção do valor socialmente disponível superior à taxa média de lucro e poderem direcionar sua aplicação. No Brasil, os fundos de previdência introduziram uma modificação substancial no sistema financeiro ao darem ao Estado a capacidade de direcionar investimentos segundo suas prioridades e de influir na determinação da rentabilidade futura.

Alguma polêmica anterior sobre o capitalismo avançado ou tardio terá que ser recuperada. Trata-se das modificações estruturais do modo de funcionamento do capitalismo plenamente internacionalizado e monopolista (Mandel, 1985), da legitimidade institucional desse capitalismo que se nega a passar por cima da liberdade de mercado (Habermas, 1972) ou ainda, das alterações das relações de classe que acontecem no ambiente social do capitalismo avançado. O argumento de Mandel é a leitura marxista por excelência do funcionamento da sociedade econômica do capital, que oferece uma visão necessária da totalidade do processo, que registra as estratégias do capital do capital, mas como se ele fosse uma entidade desprendida de suas condições operacionais concretas. Perdeu-se aqui um dado fundamental do discurso marxiano, de que o capital é uma totalidade historicamente concreta, que carrega os conteúdos culturais em geral, ideológicos e de conhecimento que são gerados na experiência da produção. Retomaremos este debate num ponto levantado por Marx no cap.XXXVI do Livro III de O Capital, quando expõe sobre a acumulação de capital dinheiro, que requer condições de aplicação suficientes para retornar esse capital ao sistema produtivo. A acumulação de capital especulativo torna-se um risco incorporado ao sistema no que as decisões individuais de preservação do capital acumulado revertem em conflitos de interesse no plano internacional.

A conta de energia sintetiza o desequilíbrio orgânico do sistema, cuja reprodução simples incorpora custos de substituições e ampliações da base produtiva, que comprometem a constituição do fundo de investimento. A rigor, a reprodução simples, tal como é definida como referência de análise por Marx, é uma situação hipotética, já que em situação alguma o sistema se reproduz exatamente como era sem mudança alguma. No panorama da economia mundial desde o fim da segunda guerra mundial, a conta de energia passou a representar a rigidez do consumo total de energia, mesmo quando o componente direto de energia no produto final diminui.

Quem realiza e quem comanda esse consumo? A sociedade do capital avançado é, essencialmente, o ambiente operacional do oligopólio, que é uma forma de mercado avessa a risco. Temos que levar a suas últimas conseqüências os argumentos de Cournot para estabelecer que o oligopólio não leva a atitudes defensivas das empresas, senão que surge de uma estratégia defensiva das empresas que trocam mais lucros por menos riscos. A aversão a riscos torna-se um traço característico do sistema, onde as grandes empresas têm mais capacidade de transferirem riscos que as pequenas e onde os contribuintes individuais não têm praticamente como transferirem riscos ou evadirem tributos. Nessa forma de mercado a arquitetura da captação de dinheiro poupado para realização de dinheiro capital compreende três elementos articulados uns com os outros. O primeiro deles é o circuito de captação de dinheiro da massa de salários e lucros distribuídos, que entra no sistema bancário já comprometida com um determinado perfil de compras. O segundo deles é o circuito de operações acionado pelos bancos, que vai em busca de aplicações rentáveis e com riscos controlados , que supõe relações estabilizadas entre os bancos e as empresas produtivas, isto é, que os bancos são funcionais à estratégia financeira das empresas. O terceiro componente é o circuito de despesa acionado pelo governo, que atinge o sistema produtivo através do acelerador da oferta de materiais para responder à despesa pública.

O fundo de investimento é a magnitude de dinheiro capital que se incorpora efetivamente à capacidade produtiva instalada nos meios de produção disponíveis. Enquanto o sistema do capital se desloca sobre estruturas tecnológicas conhecidas em estruturas de mercado invariantes pode-se pensar porque o fundo de investimento seja suficiente e compatível para satisfazer as necessidades de investimento para a reprodução simples do capital em geral. Torna-se, portanto, necessário examinar a validade dessa premissa. O argumento que se torna dominante nas condições operacionais do capitalismo avançado é, precisamente, que essas condições deixam de se cumprir em períodos de renovação tecnológica intensa e em setores da indústria onde a permanência no mercado depende de movimentos de renovação tecnológica e organizacional que têm o efeito reverso de desvalorizar o capital aplicado além da reposição de valor trazida pelos investimentos novos. Nessas condições o fundo de investimento será insuficiente para garantir a reposição da totalidade do capital aplicado e o sistema e o sistema dependerá de uma garantia de demanda que será algo além das expectativas de mercado e que se busca concretizar em contratos de longa duração. Logicamente, as previsões das empresas têm que se basear em toda essa engenharia de contratos de produção e de compras, onde os cálculos de custos e lucros têm que ser filtrados por estimativas de riscos.

Nesse ponto entra o papel da demanda pública no capital dinheiro, que precisa reduzir riscos para se manter no mercado. E esta será, seguramente, uma das principais razões para a combinação de Estado e empresa em política internacional de venda de tecnologia, desde equipamento para irrigação a equipamento militar e a tecnologia militar.


O longo curto prazo

A crise veio mostrar que a economia transcorre inevitavelmente no tempo real e não no pseudo tempo do deslocamento de variáveis. No essencial, o curto prazo é um ambiente de tempo real em que se registram eventos de curta, média e longa duração em arranjos de tempo sensíveis a diferenças de ordenamento apoiadas em cada um desses horizontes. O curto prazo é um espaço de contemporaneidade que não se confunde com o espaço virtual de pseudo tempo da análise estática. A diferença entre a percepção de curto prazo e análise instantânea determina uma compreensão dos ciclos, com a qual se reconstrói a visão do cotidiano na economia. A análise estática cobre apenas situações de pseudo tempo e não está aparelhada para tratar com a complexidade do curto prazo.

Em princípio, o curto prazo é um ambiente em que os eventos acontecem em tempo infinitesimal, ou onde a influência do tempo é nula. Por isso, é uma situação fictícia de tempo, já que em fração de tempo acontecem eventos que foram iniciados antes. A variedade de escalas de tempo com que se pode medir a duração dos fenômenos resulta no fato concreto de que não há condições de tempo senão de intervalos de tempo que têm diferente densidade fenomênica. Realisticamente, a análise social tem que partir de hipóteses fundadas em condições de tempo significativo. Com isso, se atribui outra dimensão de tempo ao curto prazo, que se torna uma referência significativa na composição de um ambiente de prazos mais longos.

Sobre essa base será possível rever os significados do tempo no contexto dos processos da crise. Em economia se aplica o princípio de que a percepção do tempo é desigual e que os momentos cruciais se sentem como mais longos. Por várias razões, como procuramos mostrar, a crise econômica tem fundamentos econômicos, políticos e culturais, que se combinam segundo elementos previsíveis de desempenho do capital e elementos incontroláveis da natureza.

O curto prazo é uma realidade complexa que não pode ser refletida pela análise econômica do instantâneo. O que é atual ou contemporâneo em economia é uma composição de processos iniciados antes, que têm diferentes durações e uma diversidade de influências de uns sobre outros. Desde qualquer ponto momento de referência há um horizonte de visibilidade do processo econômico no espaço-tempo dessa composição de eventos, em que as condições de confiança decrescem, progressivamente, e em que a diminuição dos elementos de certeza coincide com a identificação de elementos de incerteza e de indeterminação que se mantêm ou se ampliam, A diferença entre a percepção de curto prazo e a análise instantânea determina uma compreensão dos ciclos, com a qual se reconstrói a visão do cotidiano na economia.

Em princípio, o curto prazo real não se confunde com o ambiente instantâneo da análise estática. O curto prazo tem durações definidas enquanto a análise estática é um ambiente em que os eventos acontecem em tempo infinitesimal, ou onde a influência do tempo é nula. Por isso, é uma situação fictícia de tempo, já que em fração de tempo acontecem eventos que foram iniciados antes. A variedade de escalas de tempo com que se pode medir a duração dos fenômenos resulta no fato concreto de que não há condições de tempo senão de intervalos de tempo que têm diferente densidade fenomênica. Realisticamente, a análise social tem que partir de hipóteses fundadas em condições de tempo significativo. Com isso, se atribui outra dimensão de tempo ao curto prazo, que se torna uma referência significativa na composição de um ambiente de prazos mais longos.

Sobre essa base será possível rever os significados do tempo no contexto dos processos da crise. Em economia se aplica o princípio de que a percepção do tempo é desigual e que os momentos cruciais se sentem como mais longos. Por várias razões, como procuramos mostrar, a crise econômica tem fundamentos econômicos, políticos e culturais, que se combinam segundo elementos previsíveis de desempenho do capital e elementos incontroláveis da natureza, segundo regras da própria imprevisibilidade. É o que acontece, por exemplo, com alterações de hidrometria no ambiente semi-árido, que podem ser externamente determinadas, como por El Niño, e que não podem ser descartadas unicamente como um dado da incerteza do ambiente semi-árido. A concentração de informações no tempo permite distinguir grosso modo situações diferenciadas de certeza, que, para fins de simplificação, denominamos de curto, médio e longo prazo. O curto prazo é o espaço de eventos que nas condições atuais do capital,onde os programas de produção são concebidos e realizados com a referência da atual capacidade de produção. O que vem a ser o médio prazo é o ambiente onde os programas de produção se realizam com substituição de técnicas e de formas de organização inerente à renovação tecnológica. A isto passou a somar-se o fato de que esse processo se realiza sobre quantidades crescentes de capital acumulado e com concentração da capacidade de decidir sobre os usos de capital. No conjunto, a percepção da renovação do sistema produtivo em horizontes móveis de tempo remete a conceber o sistema como constituído de componentes regidos por variados graus de incerteza, que se tornam mais influentes quando os movimentos de valorização e de desvalorização de capital - associados à renovação técnica – predominam sobre os elementos de continuidade do sistema.

A redução dos tempos de difusão de inovações técnicas, que se acelerou junto com a informatização da gestão do capital, fez com que o sistema produtivo se tornasse mais sensível aos fatores de instabilidade, com que o grande capital vem desempenhando um papel de auto-regulação, através do controle oligopolístico da renovação e da difusão de tecnologias, criando uma brecha de mercado entre a produção de inovações e a difusão. Como os graus de monopólio das diversas etapas do processo da tecnologia são diferentes e variam desigualmente, os impactos do sistema da tecnologia no processo dos investimentos tende a deslocá-lo na direção de maior instabilidade.

Este argumento terá que ser considerado como parte de um conjunto de tendências que convergem sobre o sistema do capital, fazendo com que seu modo de se reproduzir aumente sua sensibilidade à incerteza. Esta é a pista a ser seguida no desenho do novo perfil da crise no capitalismo central. Não há mistério em que o sistema do capital tem sido acionado por contratos de governo, onde a maior massa de demanda pública é, justamente, a do bloco hegemônico. Neles, a participação das despesas militares contamina de modo decisivo a tendência da despesa e coloca as inovações do setor militar na frente do sistema.

As despesas militares são um traço constante na evolução da sociedade do capital desde a ascensão do Império Britânico, mas se tornam preponderantes, em parte porque os meios da guerra se tornaram mais tecnificados e mais caros
[3] porque há um custo praticamente incontrolado da manutenção da máquina de guerra, que se confunde com os custos de sua atualização. Além disso, a despesa militar tornou-se irreversível como parte de um equilíbrio de poder que aparentemente não registra os insucessos do poder militar do capitalismo central[4].


A soma de todos os medos: a crise de confiança

A cara visível da crise financeira é a de uma crise de confiança que se alastra através de mecanismos de articulação da reprodução do capital financeiro com o sistema produtivo. Esse é o seu componente subjetivo. Por trás dessa máscara há desajustes e pressões concretas nas relações entre segmentos do capital que regulam o modo como se realizam os movimentos dos diversos detentores de capitais e que regulam o modo como se realiza o processo geral de acumulação. Nessa situação estão as diferenças entre os interesses dos pequenos poupadores, das empresas em expansão
[5] e dos grandes bancos. Os pequenos poupadores precisam de aplicações de baixo risco, as empresas em expansão precisam de dinheiro barato e os bancos lucram com crédito. Fatores tais como a demanda de dinheiro de países ascendentes, de empresas em expansão pressionadas por um mercado oligopolizado e despesas militares pressionam o mercado financeiro, onde a concorrência por dinheiro pressionam o mercado financeiro, onde a concorrência por dinheiro novo pressiona as taxas de juros. Surge, então, uma brecha no mercado imobiliário, quando a renda dos pequenos poupadores não é suficiente para pagar suas hipotecas. Há um efeito dominó na base do sistema, que simplesmente opera com taxas incompatíveis com as expectativas do mercado financeiro.

Não há justificativa para explicar simplificando, dada a complexidade dos mecanismos que realimentam o processo da crise. Mas é preciso seguir a pista da ligação entre o processo da crise como e enquanto ela é um corte brusco na oferta de dinheiro e como processo que seleciona o financiamento direto de atividades produtivas do financiamento da reprodução financeira do capital. A formação de novos núcleos de dívida, como nas vendas de novos imóveis, implica em um novo problema de transferir os novos custos para um sistema financeiro esgotado que já não poderá contar com o resgate do Estado. O fim da crise é o empobrecimento dos ricos e o aprofundamento da pobreza dos pobres. São dois processos diferentes interligados, o da demanda de capital por parte das empresas e o de extrair lucro de especulações sobre as expectativas de produção. Voltamos à observação anterior de que o capital financeiro não cria demanda.

O sistema financeiro se move acionado pela demanda de capital e seria um erro reduzi-la à demanda de habitação das pessoas. Ela simplesmente se converte em demanda de capital das empresas que operam a construção civil e é nesta forma que chega ao circuito do capital financeiro, passando a fazer parte de um fluxo geral de demanda de capital, onde converge com as necessidades das empresas que operam com expansão de negócios e com as demandas do setor de armamentos. A separação entre a esfera pública e a privada se dissolve por completo, pelas mesmas razões que sustentaram a construção do poder hegemônico, que foram a garantia pública do endividamento privado e a sustentação da despesa militar. A securitização da dívida, que marcou a retomada do poderio norte-americano no início da década de 1980, na realidade consagrou uma prática essencial ao sistema, que consiste na assunção do passivo privado pelo tesouro público que se torna o fator de realimentação da dinâmica do sistema do capital.

A reprodução do capital acumulado obrigou o sistema econômico a aceitar como necessários os custos da sustentação do endividamento privado, que se tornaria relativamente mais oneroso enquanto a economia do capitalismo central deixa de ser a que se expande ou cresce mais rápido e acumula dívida externa. Encontra-se uma contradição do sistema conduzido por oligopólios, que operam de modo defensivo. O capitalismo precisa expandir os horizontes de demanda com que opera, em seu interior ou nas economias ascendentes. Hoje as diferenças de escala e de condições operativas de mercado interno entre os EEUU e os países da Europa Ocidental fazem com que a economia norte-americana deva resolver problemas de seu crescimento próprio que não podem ser cobertos no mercado europeu, por mais que as economias européias possam injetar dinheiro no sistema norte-americano. Trata-se de um problema de demanda que tenderá a se agudizar no momento em que o estímulo da despesa militar desemboca em custos de difícil absorção. É uma nova forma de marginalização, que acontece na esfera dos países aliados do bloco dos mais ricos e que encontra reforço na perspectiva de esgotamento da capacidade de crescer das nações periféricas do mundo rico. Não surpreende que o potencial de desenvolvimento dos países europeus de pequeno porte diminua, assim como que as estratégias de recomposição e de crescimento dos Estados Unidos tenham se deslocado para suas relações com a China.

Em síntese, nestas condições o curto prazo deixa de ser o espaço definido por aplicações em curto prazo para ser o espaço de impacto imediato de tendências ajustadas definidas pelo modo de reprodução do capitalismo central. A confiança no mercado depende da capacidade de compreender como ele funciona. A distância que há hoje entre as causas mais profundas do ciclo e suas manifestações superficiais reduz a análise da atualidade às causas do curto prazo, impedindo-a de ver a engrenagem da relação entre a esfera econômica e a esfera política.


Bibliografia

AMIN, Samir, El capitalismo en la era de la globalización, Madrid, Paidós, 1999.
BAUDRILLARD, Jean, A sociedade de consumo, Lisboa, Presença, 1968.
CHESNAIS, François, A mundialização do capital, São Paulo, Xamã, 1996.
COLETTI, Lucio, Marx y el derrumbe del capitalismo, México, Fondo de Cultura Economica, 1968.
DUPAS, Gilberto, Economia global e exclusão social, São Paulo, Paz e Terra, 1999.
FIORI, José Luis, Estados e moedas no desenvolvimento das nações, Petrópolis, Vozes, 1999.
FURTADO, Celso, Transformação e crise na economia mundial, Rio de Janeiro, Pqaz e Terra. 1978.
HABERLER, Gottfried, Prosperidad y depresión, México, Fondo de Cultura Económica, 1958.
HABERMAS, Jurgen, Legitimacion del capitalismo tardio, Buenos Aires, Amporrortu, 1976.
HARROD, Roy Forbes, Towards a dynamic economics, Londres, Macmillan, 1963.
HELLER, Agnes, A filosofia radical, São Paulo, Brasiliense, 1983.
HICKS, John, Ensayo sobre El ciclo económico, México, Fondo de Cultura Económica,
KEEGAN, John, Uma história da guerra, São Paulo, Editora Schwarcz, 2006.
KENNEDY, Paul, Ascensão e queda das grandes potências, Roi de Janeiro, Campus, 1989.
MANDEL, Ernest, O capitalismo tardio, São Paulo, Abril, 1983.
MARCHAL, André, Systèmes et structures économiques, Paris, Payot, 1959.
---------------------- Méthode scientifique et science économique, Paris, Génin, 1955.
MARX, Karl, El capital. México, Fondo de Cultura Económica, 1956.
NURKSE, Ragnar, Equilibrio y crecimiento en la economia mundial, Madrid, Rialp, 1961.
ODUM, E., BARRETT, G., Fundamentos de ecologia, São Paulo, Thompson, 2007.
PEDRÃO, Fernando, A produção social de hegemonia: conservação e atualização de poder no bloco histórico, Salvador, FIB, 2005.
-------------------------------- Raízes do capitalismo contemporâneo, São Paulo, Hucitec, 1995.
-------------------------------- Economia, política e poder, Salvador, Podium, 2008.
PORTELLI, Hughes, Gramsci e o bloco histórico, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
SCHUMPETER, Joseph, Business cycles, Filadelfia, Porcupine, 1961.
TAVARES, Maria Conceição, Ciclo e crise, o movimento recente da industrialização brasileira, Campinas, Unicamp, 1998.

[1] Maria da Conceição Tavares, Ciclo e crise 1998,pp.48.
[2] Denominamos de super urbanos aqueles grupos integrados em cidades que incorporaram formas de vida social que superam as formas de consumo coletivo mecanizado e padronizado e que se tornam diferenciais em relação com os grupos de rendas médias superiores. É uma designação que se coloca além da urbanização tecnológica e que contempla os modos culturais de cidades que incorporam ou modificam ou rejeitam formas de urbanismo identificadas com o moderno. Na urbanização do Brasil encontram-se segmentos super urbanos que convivem com segmentos suburbanos, que protagonizam uma urbanização negativa, de favelização e marginalização.
[3] Será revelador comparar os custos de equipar cada soldado de infantaria na segunda Guerra mundial, na Guerra do Vietnam e na Guerra do Iraque. Algumas cifras gentilmente cedidas por Carlos Costa Gomes (Ce. Ret.) são reveladoras. De uns 1.000 dólares por homem na segunda guerra mundial passou-se a uns 10.000 na guerra do Vietnam e a uns 100.000 na guerra do Iraque. O aumento exponencial do capital aplicado por militar engajado no conflito também compreende alterações na relação entre o número total dos militares e aqueles diretamente engajados em operações. Como a maior parte do investimento encontra-se em equipamento coletivo, desde helicópteros a veículos de transporte etc., infere-se que o custo médio por homem é muito superior ao que se infere dos equipamentos individuais.
[4] Cabe ver os argumentos apresentados por Donald Kennedy em seu Ascensão e queda das grandes potencias e de John Keegan em A historia da guerra. Na complexidade de fatores que decidem por um ambiente bélico crônico há importantes diferenças entre as políticas de tecnologia e as pesquisas que se fazem sobre a experiência de cada guerra e o mecanismo financeiro que alimenta as empresas que produzem equipamentos e munições.
[5] Cabe aqui lembrar o argumento de Wicksell para explicar o ciclo, que parte da demanda de capital das empresas e que descarta a visão subjetiva de Schumpeter acerca de papéis inovadores de capitalistas individuais.

terça-feira, 2 de junho de 2009

ARTIGO

A ECONOMIA DA AMÉRICA ANTERIOR À INVASÃO EUROPÉIA


Puesto que ya no existe vuestro gran poder ni vuestra estirpe, y tampoco merecéis misericordia, será rebajada la condición de vuestra sangre. Popol Vuh (livro maia tradicional)


Os fundamentos da economia americana

A economia da América anterior às invasões européias divide-se, nitidamente, em sociedades teocráticas e militares desenvolvidas e em sociedades tribais pouco complexas. Entre umas e outras há uma variedade de situações intermediárias, que se distribuem irregularmente no tempo, que, entretanto, não contradizem essas referências básicas. Concomitantemente, todas essas sociedades dividem-se em sociedades que foram capazes de gerar uma urbanização significativa e sociedades que não ultrapassaram a forma dos aldeamentos. Por isso, na organização das sociedades americanas há uma questão fundamental relativa a densidade e localização do povoamento. Por extensão, há três aspectos fundamentais da história econômica americana, que são, os sistemas agrários, a engenharia megalítica e a urbanização.

Cada um deles deve ser analisado por separado e em conjunto com os demais, para que se chegue a identificar a adaptação ao meio físico e a capacidade de criar mecanismos alternativos para o povoamento, que permitissem contornar dificuldades naturais mais importantes. Observa-se que todas as principais sociedades americanas mostraram-se capazes de complementar ou corrigir condições naturais para o povoamento. A adaptação ao meio físico e a capacidade de sustentar populações numerosas dependeu da formação dos sistemas agrários, que, entretanto, jamais aconteceu por separado da formação de sistemas institucionais capazes de realizar a mobilização de trabalho necessária para uma lavoura de grandes proporções. Tal mobilização de trabalho passou a funcionar como base dos sistemas militares e de seu uso não bélico, nas construções megalíticas, que tiveram um papel econômico fundamental, desde a produção de solo cultivável, às obras hidráulicas e finalmente, à urbanização.

A capacidade de captar e direcionar trabalho é um aspecto essencial da formação das sociedades americanas mais avançadas, nas quais há um papel econômico e político das estruturas religiosas a ser avaliado. O significado político do poder religioso foi essencial na determinação de relações de produção que visavam obter um excedente físico coletivo de produção, aumentando a capacidade de produção, mesmo quando não aumentando a capacidade de acumular riqueza.

O cone de luz, o impreciso e o tergiversado

Cada vez mais, o estudo dos problemas da história recente exige elementos de esclarecimento da história antiga. As diferenças de profundidade de história antiga, bem como a possibilidade de tratar a história como um movimento contínuo, são referências da perspectiva européia da história, apenas quebradas em algum momento brilhante pela antropoarqueologia. Jean-Pierre Vernant (1984) é responsável de um desses achados interpretativos, quando mostra o papel decisivo de uma confusão entre o fim de um período de decadência e um período de expansão, que se tornou uma grande tergiversação da história do Mediterrâneo oriental. O olhar americano da história não pode ficar preso às determinações da visão européia, nem pode pretender ser uma continuidade privilegiada da experiência européia, que, por isso, descarta ou minimiza a importância da América anterior à invasão européia e das influências não européias na forma’’cão das Américas.

Além disso, a pluralidade de antecedentes e de condições das Américas impõe reconhecer que há diversos olhares americanos, e que há dois níveis de pluralidade americana, que são, justamente, o da pluralidade do mundo americano anterior à invasão européia e a do mundo americano criado pelas sucessivas invasões européias. A relação entre as pluralidades e as identidades desloca-se ao longo do tempo, muda de feição, segundo muda a composição dos integrantes. A visão que prevalece é aquela formada sobre uma imigração vitoriosa nos séculos XVI e XVII, mas é preciso levar em conta que, desde então, há outras visões, criadas por outras imigrações numerosas, que tendem a ter um espaço cada vez maior. Em algum momento ganharão fôlego visões italiana e oriental da América, do mesmo modo como surge uma visão negra e como o mundo saxão é penetrado pela visão hispânica. Um dos fundamentos objetivos do racismo americano, especialmente do norte-americano, é a defesa de uma visão minoritária que pretende ser majoritária e que, por isso, converte-se em bloqueio do processo social em seu conjunto.

A América anterior a 1492 foi formada mediante processos diversos, como aqueles ao norte da Mesoamérica, os da Mesoamérica, aos Andinos, os das Antilhas e os do Escudo Atlântico, e passou a dar lugar a uma América Espanhola, uma América Portuguesa, uma América Saxã e outra Francesa e outra Holandesa. São diferentes condições sociopolíticas e etnoculturais, em que a participação africana passou por diferentes condições de inserção e onde, finalmente, as migrações recentes – posteriores à Revolução Francesa – também tomaram diferentes feições.
A questão é que o aprofundamento e o alargamento da antigüidade dão novo sentido ao que se sabe; e o campo do conhecido se revela como um cone de luz, cujos limites mostram o perfil da imprecisão do conhecimento. Fundamental de nossa época é ter-se percebido que esse cone de luz se desloca; e que a leitura do campo iluminado depende da síntese cultural com que se lê. É a visão englobante de que fala Karl Jaspers (1956). Mas que, além disso, tem um conteúdo histórico cambiante, que sempre mostra novos ângulos do passado. A cada momento, é preciso fazer uma síntese de experiências que se abrem mais, tal como acontece quando se sobem montanhas e se descobrem novas formas dos vales. Por exemplo, as migrações dos ameríndios no Brasil podem ser completamente separadas dos movimentos migratórios dos povos andinos, ou têm alguma relação com eles? Qual o significado da comunicação entre civilizações peruanas e mesoamericanas que já se tem como certa? Qual a continuidade entre as civilizações mais antigas e as mais recentes da área andina?

No relativo à América mais que a outras partes do mundo, essa recondução da antigüidade é necessária, porque sua real importância foi, quase sempre, menoscabada. A América reconhecida é a produzida pela visão européia, submetida a sucessivas influências, ibérica, francesa, inglesa e norte-americana. As demais visões - submergidas nas anteriores - como a islâmica e a judaica - ainda não foram desvinculadas das hegemônicas. Não há uma visão negra da América por razões óbvias. Mas tampouco há uma visão italiana ou russa, ou mesmo japonesa. A grande lacuna na verdade é uma visão americana da América em seu conjunto, que se construa sobre a objetividade do conhecimento das experiências que constituem o passado americano.

A simples enunciação desse problema evidencia a necessidade de romper com os limites auto impostos, de querer explicar a formação americana com os elementos organizados desde o início da colônia. Tal simplificação significa ignorar a complexidade do componente americano, ou supor que ele foi apenas passivo frente à pressão externa que se supõe ter sido sempre européia. Mas, para evitar essa simplificação, é preciso identificar referências próprias das formações sociais americanas; e tratar com seus problemas fundamentais de sobrevivência. A história dos sistemas políticos trata com resultados de processos sociais, enquanto a história da luta pela sobrevivência vai ao fundamento da formação das comunidades. A comunidade é a categoria fundamental na pré história americana, que se torna depositária de experiências de coletivos que se consolidam e produzem instituições.

O objetivo deste ensaio é percorrer criticamente um campo temático cuja elaboração deve ter consideráveis efeitos indiretos na explicação de processos econômicos da atualidade. O estudo refere-se à gestão do trabalho no universo americano pré ibérico e às condições sociais de acumulação nas sociedades teocráticas, agrárias e militares americanas. Segue, portanto, a pista aberta por Angel Palerm (1972), relativa à propriedade de pensar em termos de modo "asiático" de produção. Espera-se que outros autores, melhor qualificados e equipados, prossigam nesse esforço de esclarecimento.

Uma segunda questão fundamental, que deriva da anterior, que se esboça por trás dessa pesquisa sobre a pré história americana, refere-se à possível pré disposição das sociedades americanas para absorver as formas de dominação impostas desde a invasão ibérica, especificamente às formas de controle do trabalho; e aos elementos de resistência e às contradições entre o estilo civilizatório "ocidental " e a realidade americana. A América atual é um desdobramento da civilização "ocidental", ou é outro ocidente, o Extremo Ocidente, entretanto formado com ingredientes majoritários que jamais participaram da civilização greco-judaica européia? Trata-se do componente americano propriamente dito, cujos processos formativos foram subsumidos pelos da invasão européia; e do componente africano, que foi marginal - ou negado - na Europa e fundamental na formação da América moderna.

Algumas hipóteses interpretativas

Este trabalho parte de duas observações e de uma hipótese, aparentemente não contraditórias com os principais corpos de conhecimento organizado sobre o continente. As observações referem-se ao período anterior à invasão ibérica e aos resultados alcançados pelos povos sedentários mais numerosos. A hipótese refere-se à não linearidade dos processos americanos em escala secular, com avanços e recuos, estruturações e decomposição de regiões, que aprofundaram e ampliaram, mas não delimitaram, o que se pode chamar de abismo americano. Há muitos elementos, que podem ser combinados para esboçar um painel, irregular, desigualmente consistente, mas em princípio conducente ao encaminhamento de um esforço interpretativo a ser paulatinamente avaliado e confirmado ou redirecionado.

Essa hipótese geral de não linearidade tem algumas implicações práticas fundamentais.Não linearidade significa que não houve elementos de continuidade suficientes entre uma civilização e a seguinte, o que, por sua vez, significa, dentre outras coisas, que os progressos técnicos não necessariamente se transmitem e que a acumulação de capital nem sempre serve às sociedades seguintes. Entretanto, quanto a produção de solo e as obras hidráulicas feitas por um povo serviu aos povos seguintes?

É indiscutível que o principal traço da América pré ibérica avançada, claramente localizado nas civilizações andinas, é o desenvolvimento de uma produção agrícola controlada, especialmente com a produção de solos cultiváveis, controle de usos de água e desenvolvimento de culturas alimentares de qualidade controlada. Isso compreende a construção de áreas cultiváveis em vales e em pendentes, que é um conjunto de obras de manejo de solo e de terraplanagem e o desenvolvimento das culturas básicas: milho, batata, quínoa. A terraplanagem tem um componente religioso e monumental, tal como em Texcoco no México, e tem o componente de obras de translado de pedras e terra, para construção de espaços planos artificiais para cultivo, em pendentes – Andes – e em pequenos vales.

No século e meio anterior à invasão ibérica, os povos americanos evoluíram em dois sentidos fundamentais, que foram, a proliferação de cidades, compreendendo algumas cidades de grande porte; e o desenvolvimento de sistemas alimentares apoiados em sistemas de abastecimento de longas distâncias. Além disso, aparentemente entre os séculos X e XI, resolveram alguns problemas técnicos de produzir alimentos semi elaborados em grande quantidade. Parece haver uma estreita aproximação entre essa solução da questão alimentar e a construção de impérios. Nenhum desses dois componentes foi então inventado. De fato, que em alguns lugares, como no norte do Peru, esses problemas podem ter sido resolvidos entre os séculos IV e V. Mas no período dos séculos X e XI houve uma mudança fundamental, em conseqüência de sua combinação e, aparentemente, em conexão com o grande aumento de população a que essa combinação esteve associada.

Todas essas hipóteses estão expostas a crescente crítica, advinda da ampliação do conhecimento do universo pré ibérico, que encontra fenômenos urbanos de grande escala há mais tempo, se bem que - pelo menos até agora - situados na relação palácio--casebres apontada por Vernant como características do mundo helênico pré dórico. A observação parece confirmar-se plenamente, desde a organização social de Teotihuacan (Vale do Mexico) à de Pachacamac (Peru central), inclusive do mundo maia.
De qualquer modo, a mudança no eixo urbanização-alimentos exigiu a solução de dois problemas, respectivamente, de transportes e de conservação de alimentos; e de aprovisionamento de água em grandes quantidades. Em toda a América foram soluções extremamente penosas, dependentes de população numerosa, dada a falta de animais de carga. Tecnologicamente, a urbanização de Cuzco ( Sul do Peru) no século XIII e de Tenochtitlán ( Vale do Mexico) no século XIV não podem ser comparadas com a de Cnossos ( Creta), nem sequer com a da Babilônia de Sargão, pela falta de burros ou de camelos. Comparada com camelos e dromedários, a lhama é insignificante.
[1] Torna-se, portanto, inevitável tomar como estratégica a relação demografia-urbanização, assim como se revelam fundamentais as interfaces entre as formas de produção agrícola e as necessidades de instrumentos de lavoura.

Esse movimento geral conteve três grandes movimentos aglutinadores, no altiplano mexicano central, no altiplano andino e nas savanas mesoamericanas; e diversas outras expressões, de médio e de pequeno porte, similares em tendência. Os dois primeiros foram síntese de uma variedade de formações sociais não necessariamente contínuas, mas certamente interligadas. Mas esses movimentos coincidiram com diversos outros, de menor profundidade, de variável escala, de sedentarização e de início da agricultura, abrangendo grande número de povos. Verifica-se, portanto, a necessidade de examinar o eixo demografia-irrigação.

A economia da América anterior à invasão européia terá que ser subdividida em diversos períodos, tanto mais quanto mais complexos e diferenciados os grupos de eventos considerados. Mas, em todo caso, padecerá de uma restrição fundamental, de trabalhar com um ponto de partida móvel, que deverá recuar, bem como ceder a realinhamentos, ao revelarem-se ligações entre suas áreas mais densas de acontecimentos; e com outras áreas mais densas de acontecimentos; e com outras áreas densas fora do continente. É preciso manter abertas opções de análise de outras ligações intercontinentais além das da invasão ibérica, que tenham significado histórico, bem como é preciso dar maior peso a comunicações continentais na própria América.

Isso envolve uma forte crítica da história oficializada. Em princípio não parece razoável supor que o homem pré glaciar pôde migrar e que seus sucessores jamais puderam. Porque houve movimentos migratórios entre 20 e 14 mil anos e não houve depois disso? Tampouco se pode desconhecer o potencial explicativo das migrações polinésias, comprovadas no trajeto Bali-Hawai e testemunhadas até pela cozinha dos povos indígenas da costa do Pacífico, desde o Chile até o México
[2]. Um aspecto fundamental a explorar, é a evolução de nossa capacidade de formular hipóteses capazes de desequilibrar os modelos explicativos oficializados. Se, por um lado, é preciso admitir que há culturas antigas, como a dos olmecas, cujas características e origem divergem de um modelo central explicativo das migrações mesoamericanas, por outro lado é preciso admitir a possibilidade de que pode haver outros eventos migratórios, que em seu conjunto reduzam o poder explicativo do movimento entre terras áridas e terras férteis entre o norte e o centro do México.

O olhar sobre o passado remoto enfrenta a diminuição progressiva de visibilidade e a crescente fragmentação dos elementos de conhecimento. De todos modos, há pistas, há trilhas a seguir e há comparações a fazer. A atitude é semelhante à dos arqueólogos, que trabalham com material obtido de raspagens e furos realizados na direção de espaços menos densos. Destacam-se duas pistas dentre muitas a serem seguidas, que se referem aos aspectos de continuidade e de descontinuidade dos movimentos civilizatórios; e à relação entre o conhecimento especulativo e o prático.

Mas, como se trata da leitura de material desigual e do registro da trajetória através de seus capítulos mais recentes, há uma necessidade de buscar referências relativamente mais estáveis em que se apoiar. Daí, há um problema inevitável, de desenvolver uma progressão de comparações, para formar juízo sobre os elementos de conhecimento disponíveis. A história da América é cerceada pela escassez de pesquisa e pelo viés de tender a reduzir a complexidade do continente às cadeias de eventos identificadas com as sociedades americanas mais desenvolvidas. Tende a ser a história do Peru e do México, apesar da importância indiscutível da história da Colômbia.

Chegar a uma história mais abrangente e equilibrada também é um objetivo inevitável desse estudo do passado pré ibérico. Na América, os esquemas explicativos gerais têm sido, repetidamente, quebrados por achados e por reavaliações de núcleos antigos, responsáveis de produtos reveladores de maturidade, portanto, de um trajetória formativa própria. Os povos do ouro e do artesanato (Disselhof, 1967) da costa ocidental da Colombia, do delta do Magdalena e da América Central constituem uma bacia cultural complexa e plural, de que há indícios de uma agricultura antiga, provavelmente a ser equiparada com as etapas formativas do Peru pré incaico. As indicações de que o contexto civilizatório andino é mais antigo que o mesoamericano só são válidas enquanto se trabalha com as civilizações já datadas.

O reconhecimento de que a história do continente está constituída de avanços e recuos é parte necessária da comparação entre os séculos X e XI e XIII e XIV e envolve, igualmente, as regiões das sociedades mais avançadas. Por extensão, obriga a uma explicação das decadências, de que apenas se tem feito algo no relativo aos maias. Possíveis causas reiterativas de decadência demandam mais explicações que as disponíveis.

A comparação com a civilização "ocidental " é inevitável, porque é a melhor documentada e mais conhecida. Nela, a América a rigor deve constar como o Extremo Ocidente e os países do Mar do Norte podem ser classificados como Ocidente Próximo. Mas é uma comparação que não pode ser tratada com o eurocentrismo típico da visão do Iluminismo. A revelação, ou o reconhecimento das vertentes orientais e a revisão da visão da África, levam a pluralizar as comparações da América. O mundo americano pré ibérico não se compara com a Europa ocidental, senão com a variedade de regiões do mundo que foram atingidas pela agressividade daquelas nações européias que ultrapassaram os limites da formação local de poder. A diferença com as demais regiões foi que aqui o capital mercantil desencadeou uma grande migração, principalmente constituída de africanos, mas da qual participaram muitos outros, integrando minorias de outras partes do mundo.

Observa-se que Portugal não entrou nesse jogo na qualidade de país pequeno, senão na qualidade de país que se beneficiou de movimentos internacionais, concretamente, da imigração de capitais da rica Andaluzia. As cadeias de eventos que dominaram a península ibérica no século XIV compreenderam a ligação da nobreza portuguesa com as ordens militares religiosas, bem como os efeitos da invasão da Andaluzia pelos castelhanos, que iniciou a passagem de capitais daquela região para Portugal. O conto da motivação religiosa da conquista parece tão pueril quanto o mito do pacifismo lusitano.

Referências da economia americana pré ibérica

Nesta análise são necessárias referências adequadas para refletir o espectro de formas de organização e de atividades registradas no continente. Nesse sentido, colocam-se dois encaminhamentos. O primeiro, de situar as referências da fase final pré ibérica. O segundo, de referências das formas organizacionais e das tecnologias americanas. A generalização de algumas tecnologias e o aperfeiçoamento de alguns produtos indicam as peculiaridades das grandes bacias culturais, mas também assinalam os mecanismos de controle político e militar desenvolvidos em cada uma delas. Se essas sociedades foram não capitalistas, não há como desconhecer que seu progresso em termos de dieta de sua população constituía um progresso material necessário aos seus objetivos implícitos.

Como observações gerais, que afetam esta reflexão em seu conjunto, agregam-se outras duas. Primeiro, que não é razoável restringir as comunicações com outros continentes à suposta migração original por Behring. Segundo, que a construção de uma visão americana significa uma subversão da visão tradicional, que é derivada da européia. As diversas explicações da vinda de vikings, fenícios e polinésios, têm variados fundamentos históricos, mas, em todo caso, indicam prováveis rumos da história antiga que deslocam a história oficializada.

As referências da fase final pré ibérica compreendem uma visão geral das formas organizativas, representando os diversos sistemas conhecidos, os elementos transferidos ou herdados de culturas anteriores, e as ligações entre sistemas e entre sociedades. Tal visão, logicamente, pressupõe que se reúnam os elementos disponíveis de conhecimento em nova organização, destacando a linha de tensão entre a sustentabilidade econômica das organizações sócio-políticas e a capacidade de expandir-se que revelaram as organizações em suas diversas escalas demográficas e territoriais.

Nesse esforço, outra vez, são necessários esclarecimentos preliminares, sobre as condições objetivas da análise e sobre suas implicações subjetivas. A história da América anterior à invasão ibérica é uma história quase exclusivamente externa, mercê de ampla e profunda separação entre sujeito e objeto de estudo. O universo de subjetividade americana só é recuperado através de sobrevivências modificadas na atualidade, portanto, desiguais seguindo as áreas culturais em que os componentes anteriores são identificáveis.

Objetivamente, esta análise enfrenta as dificuldades consequentes de escassez e irregularidade de material relevante, especialmente sobre os povos menos poderosos e mais atrasados. A América pré ibérica foi muito destruída, mas não se sabe concretamente quanto dela foi destruído no século XVI e quanto foi destruído antes do século XVI, no contexto de processos exclusivamente americanos. Precisa-se, especialmente, de observações sobre os aspectos materiais da organização social, que vão se refletir na capacidade de acumular, além da competência com que se produz para consumir.

Isso significa tratar do potencial de desenvolver-se dessas sociedades. A análise conseqüente refere-se às condições locais de realização dos processos sociais econômicos. Na América pré ibérica os processos econômicos organizaram-se em regiões de variadas densidade e estabilidade, cuja duração tem uma correspondência com os efeitos indiretos na indução de outras regiões e de transformação das organizações sociais e políticas.

A visão atual da América foi formada a partir da visão européia herdando, portanto, os preconceitos dos povos dominadores, que em parte para justificarem sua agressão, e em parte para valorizarem sua posição, desmereceram os resultados materiais alcançados pelos povos americanos, ou trataram-nos simplesmente como pitorescos ou excepcionais.

O preconceito assumiu diversas formas, desde a da separação, ou da suposta ruptura entre os processos pré ibéricos e os do período colonial, até os que transformaram os processos americanos em meramente culturais, no sentido em que, tratados como formas sociais incapazes de evoluírem no contexto tecnológico da civilização ocidental. No entanto, não se podem evitar perguntas sobre as tendências de transformação material das sociedades americanas, quando elas foram atingidas pelos países da Europa ocidental.

As experiências da Espanha e de Portugal são obviamente as principais dessa avalanche do século XVI, mas é preciso levar em conta as experiências dos franceses e dos holandeses no processo colonial. Enquanto os portugueses trabalharam para construir um espaço colonial produtor agrícola, os espanhóis procuraram obter resultados da mineração, relegando a agricultura à função de supridora local de alimentos. Mas, certamente, foram os holandeses que lançaram uma tentativa moderna no sentido de pós feudal e mercantil internacional, capaz de superar plenamente os referenciais de eficiência dos ibéricos.

No reconhecimento dos conteúdos tecnológicos americanos, destacam-se a agricultura, o artesanato e a construção civil. As sociedades mais avançadas distinguem-se, justamente por terem dominado esses três componentes e alcançarem, paralelamente ou consequencialmente, uma ligação entre a especulação metafísica e cosmológica e os usos das tecnologias. O conjunto megalítico de Xochicalco, no Mexico central, é uma das mais nítidas representações dessa situação, em que a fusão das culturas mexica e maia deu lugar a uma combinação de representações astronômicas e de simbologia religiosa da agricultura.

Oficialmente, os europeus fizeram tabula rasa da experiência agrícola anterior, apesar de usarem-na como aparelho subordinado dos sistemas de produção localmente organizados. No entanto, esse desdém pelo conhecimento prático indígena está em aberta contradição com a incorporação dos principais alimentos locais, tais como batatas, milho, tomates, mandioca, além do chocolate e diversos animais de criação, bem como das técnicas e dos materiais de construção. A agricultura em terraços, a agricultura com controle de salinização, praticadas na área andina, da Bolívia ao Equador, são elementos técnicos de uma tecnologia e de uma organização social adaptada ao meio físico.

Fica em aberto a questão relativa ao artesanato, que quase sempre é tratado por seus aspectos de adorno, tomando-se o artesanato utilitário apenas pelo que representa de aperfeiçoamento técnico. No entanto, falta uma análise arqueológica suficiente, para avaliar a importância da qualidade dos instrumentos artesanais de trabalho. A falta de uma metalurgia utilitária leva, num primeiro momento, a subestimar a qualidade dos instrumentos de madeira e de pedra. Entretanto é uma linha de trabalho a ser melhor explorada. As pontes suspensas do Peru são uma prova incontestável do aperfeiçoamento do uso utilitário de madeira e fibras.

A desqualificação de conhecimento tecnológico americano por parte dos conquistadores, primeiro de portugueses e espanhóis e depois por holandeses e ingleses, foi um processo similar ao antes realizado pelos indo-europeus com o conhecimento do mundo islâmico, também incorporado e negado. Neste caso, a desqualificação foi parte de uma operação ideológica, destinada a justificar a escravidão, que, entretanto, deixou inúmeros pontos sem resposta, especialmente no relativo ao suprimento de alimentos[3].
Ao comparar os resultados obtidos nas sociedades americanas com os europeus, somos levados a toma-las como equivalentes da capacidade de produção da Alta Idade Média e não da Baixa Idade Média.

Usos de trabalho

Os usos de trabalho na América foram condicionados pela falta de animais de carga e transporte, pelas condições físicas da agricultura nas áreas colonizadas pelos pré ibéricos - montanhas, comparadas com os bosques europeus - e pelas grandes extensões semi-áridas. Aparentemente, as sociedades que floresceram em áreas hoje de floresta, prosperaram quando elas eram menos densas; e em todo caso em condições hídricas especiais.

As sociedades americanas capazes de construir com materiais perenes foram as que conseguiram resolver os problemas de saúde pública das concentrações demográficas numerosas. Observe-se que a difusão de enfermidades promovida pelos espanhóis dependeu mais de sua incapacidade de resolver esses problemas, que de exposição a doenças novas, que poderiam ser controladas em melhores condiç ões de higiene.

As sociedades americanas avançadas usaram muito trabalho manual, que conseguiram liberar da rotina das lavouras, aparentemente em movimentos similares aos da Mesopotâmia,
[4] mediante elevados retornos de sua semeadura feita com chuços, não porque seus rendimentos por área aumentassem - que seria uma hipótese muito pouco provável - mas por diversificarem as roças e processarem a maior parte da produção. Ambos recursos podem ser vistos até hoje em comunidades indígenas no Mexico, na Colômbia, no Equador, no Peru. Os índios processam o milho, a batata, além de utilizarem uma grande variedade de estratégias para garantir seu suprimento de proteínas, como se infere dos depoimentos dos conquistadores.

De todos modos, foram sociedades que cultivaram o trabalho organizado a partir da esfera familiar, que por isso enfrentaram crescentes dificuldades para aumentar a dotação de trabalho necessária para formar capital. A passagem da esfera familiar à das comunidades é fundamental para explicar os movimentos de captação de trabalho. Isso aparentemente explica a repetição de práticas de escravidão praticada por povos que não acumularam capital no sentido capitalista desta expressão. Mas a preservação da esfera doméstica como referência da organização política faz com que os resultados da produção permaneçam na esfera do valor de uso, dando-se menor importância aos seus desdobramentos na esfera do valor de troca. A troca em si permanece subordinada às determinações dos usos.

As observações sobre a organização econômica estão objetivamente divididas entre as sociedades mais desenvolvidas recentes e menos desenvolvidas recentes, o que quer dizer, as mesoamericanas e andinas de um lado e caribenhas e atlânticas do outro. Mas essa é uma grande simplificação, que apenas ajuda aos estudiosos das vertentes nahua
[5] e maia [6] pelo norte e quechua pelo sul, sem penetrar no mais delicado da questão, que é a complexidade dos mundos mesoamericano e andino; e a falta de uma visão em profundidade da organização sócio-econômica, suficiente para ligar, por exemplo, os movimentos demográficos e urbanos do século XIII com os do século X.

A questão dos usos de trabalho na reprodução social surge como chave de um complexo argumento, que quebra o culturalismo, tão funcional e útil à visão "ocidental" da América. Ressalta-se que os usos de trabalho foram desenvolvidos pelas sociedades americanas e não pelos colonizadores, que deles se apropriaram. Se a instituição mexicana do ejido tem antecedentes na Espanha islâmica, não cabe dúvida que esse sistema de produção coletiva está ancorado na estruturação das comunidades indígenas (Ekstein, 1967).

A rigor, é o argumento que permite ultrapassar a discussão das formas institucionalizadas do canibalismo, para caminhar rumo a questionamentos objetivos. O canibalismo expandiu-se em Mesoamérica aparentemente a partir do século XI ao século XIII, ligado à supremacia tolteca, persistindo como prática generalizada das tribos neolíticas sul-americanas. Suas fronteiras não estão definidas, nem suas origens. Não está nas esferas maia, quechua, olmeca, nem entre mapuches. Entretanto, enraizou-se na sociedade azteca, sem ter contaminado os "etruscos" de Azcapotzalco ( Vale do Mexico).
[7]

O canibalismo foi, portanto, a máxima expressão de uma atitude auto destrutiva da sociedade mexicana, uma contradição fatal, dada sua necessidade de aumentar a mobilização de trabalho. Os equivalentes americanos do feudalismo limitaram-se à mobilização de trabalho pela esfera doméstica, criando um sistema rígido de relações de casta, fortemente repressor, que inibiu quaisquer formas de individualismo. A análise de Soustelle (1967) desse fenômeno evoca, intencionalmente ou não, o perfil de Esparta. O aparente desprezo dos mexicanos pela individualidade repetiu-se no Peru (Alden Mason, 1958). Mas essa seria apenas a atitude das duas principais sociedades militares do século XIV, que não reflete a dos povos por eles dominados.

A avaliação dessa contradição relativa ao trabalho alenta o argumento, manejado por diversos estudiosos, que as sociedades azteca e incaica estavam iniciando movimentos de decadência quando foram atacadas pelos espanhóis. Dadas suas limitações de mobilização de trabalho, sua capacidade de reproduzir-se decrescia rapidamente, acelerada pelos problemas de recursos para manter Tenochtittlan e Cuzco. A urbanização tem, assim, um significado muito maior que o do crescimento das cidades e o do monumentalismo.

O aprofundamento desse argumento leva, por extensão, a questionar o relativo à expansão da área cultivada e da subordinação, direta ou indireta, dos neolíticos aos sedentarizados. No México é fácil distinguir a separação entre a linhagem dos mexicas-aztecas e a dos povos mais pobres, tais como os otomís, mazahuas, huicholes, totonacas e outros. Mas na América do Sul esses fenômenos estão à espera de uma arqueoantropologia que revele os movimentos de ascensão e recomposição das sociedades, tal como fez Vernant.

Para o Brasil, é uma reviravolta necessária, para quebrar a linearidade da leitura "européia". Assim como não é mais possível aceitar que a perspectiva política feudal portuguesa dê conta da complexidade ibérica, tampouco é possível reduzir a América anterior à invasão ibérica ao universo cultural oferecido pela leitura norte-americana. O mundo indígena neolítico brasileiro surge com grande complexidade e com movimentos migratórios também importantes e de longas distâncias ( Ribeiro, 1996).

A história de acontecimentos ilustra e revê os limites da questão. Se o Brasil foi, de fato, descoberto por Yañez Pinzón
[8], redescoberto por Cabral, ou se ambos foram antecipados por diversos outros europeus, é sempre um modo de situar esses eventos como o primeiro dia da criação. Tal momento foi de atrelamento do espaço social americano à expansão do poderio da Europa ocidental. Representou a substituição dos usos de trabalho locais pelos impostos de fora. Mais que outras partes da América, o Brasil foi onde o projeto europeu de poder criou um lugar para a experiência maciça com a escravidão produzida para o capital mercantil.


O círculo de passado e presente

Provavelmente, a idéia americana pré ibérica mais poderosa é a de tempo finito e circular, das sociedades mexicanas. A finitude afirmou-se aqui com força equivalente à idéia jônica de infinito. O tempo finito mexicano
[9] permite tratar com a noção de repetição, [10] ao tempo em que torna compreensível que uma parte do mundo permanece constituída de formas mais simples de vida social, que se pode comodamente denominar de atrasadas. Essa noção não surge por acaso. Reflete uma relação entre a cosmologia e a sociologia histórica. No universo do tempo circular, o progresso é um substrato, algo que não se pretende, mas que não se evita. O poderio militar e político, no entanto, estava limitado pela capacidade de usá-lo.

Mais uma vez, verifica-se que uma comparação entre os séculos XI e XIII seria necessária, para concretizar uma perspectiva genuinamente histórica da América. Qual noção de progresso seria parte da expansão incaica? Qual da maia? É possível pensar em termos de progresso no espaço brasileiro? Como considerar os demais povos socialmente desenvolvidos que tiveram menor poder político? As transformações mencionadas da forma das cidades não são um registro de progresso?

A invasão ibérica quebrou as organizações sociais americanas e trouxe novo sentido de finalidade no plano da vida econômica e da estruturação política. A grande questão criada pela invasão européia, começada pelos portugueses e espanhóis, seguida da dos demais europeus, foi a de subordinação dos usos do trabalho a interesses externos; e de comando da composição do trabalho pelos interesses representando o capital mercantil.

Esse novo ordenamento criou um crescente número de grupos em formas de organização que se tornaram lugares de empobrecimento crônico. Assim como a escravidão organizada condenou os africanos à imagem de escravos, relegou a experiência americana à categoria de atraso. A questão da escravidão compreende a escravidão regulamentada de africanos e a escravidão não regulamentada, porém instituída dos indígenas nos países da América Espanhola.


Agricultura, urbanização e mercado

Não há como duvidar que as sociedades americanas alcançaram importantes resultados em sua agricultura e em sua construção civil, no campo genético e no da produção, na construção monumental e na utilitária, em escalas que lhes permitiu absorver seu crescimento demográfico. Esse processo de expansão da produção foi secularmente descontínuo nos Andes, mas conteve períodos longos de ampliação da área cultivada e da produção obtida, podendo-se considerar, à luz do conhecimento divulgado, que o principal fundamento rural do mundo andino pré ibérico é a produção de solo. Isso está muito claro, a partir de simples passeio pelo material exposto nos principais museus e parece ser, progressivamente, confirmado pelas novas observações de achados de áreas densamente povoadas. O período Wasi, particularmente, a partir do século III, marca claramente essa tendência, que, também na aparência, estaria limitada pela mobilidade dos trabalhadores.

Entretanto, esses sucessos foram decisivamente comprometidos por sua falta de uma metalurgia utilitária, assim como de não terem chegado à roda e não disporem de animais de tração. a ausência da roda determinou sua impossibilidade de chegaram à energia hidráulica, que foi a grande ruptura do Egito e da Mesopotâmia com a tração humana.

O argumento de que essas falhas se devessem à falta de organização do mercado revela-se improcedente, justamente, porque a urbanização levou à formação de mercados, no sentido original das feiras européias medievais. Só que nas sociedades americanas a formação de mercados ficou subordinada à organização feudal reorganizada no recinto urbano (Soustelle, 1972). Diferentemente do ocorrido nos países europeus, as sociedades americanas mantiveram a organização social pré urbana, impedindo que os interesses econômicos se expandissem. Somos obrigados a considerar como explicação mais plausível, que os fundamentos teocráticos, mais que o autoritarismo militar, foi o principal responsável de não surgirem sociedades de classe.

Assim, o estudo da América pré ibérica divide-se entre o daquelas sociedades que podem ser analisadas através da urbanização; e o daquelas outras que ficaram aquém dessa etapa. As grandes questões levantadas por Palerm, no relativo à organização do trabalho para as obras hidráulicas, aplicam-se com maior razão, à construção das cidades. As cidades resultam de atividade construtora contínua, enquanto as obras hidráulicas podem ser realizadas mediante trabalho estacional. A construção de cidades envolve um engajamento regular de trabalhadores, que depois ficam completamente desocupados e têm que ser engajados de outros modos, também suficientes para mantê-los. A experiência das cidades de hoje com trabalhadores da construção civil desempregados permite raciocinar por analogia com esses problemas das sociedades pré ibéricas.

Sem dúvida, é preciso conhecer melhor o significado social da urbanização pré ibérica, combinar o alargamento da base factual da urbanização - construção e reforma de cidades - com o aprofundamento do conhecimento de seu papel na formação daquelas sociedades. Há toda uma escala de urbanização para servir a finalidades locais e como parte de sociedades nacionais pluri étnicas, como no Peru. A complexidade de muitas dessas cidades revela situações além da polaridade palácio-casebres, apesar de não terem alcançado um equivalente da agora grega.
[11] Também, é inevitável considerar que o tipo de urbanização representado pelas grandes cidades americanas, Cuzco e Tenochtitlan, contrasta com os conjuntos teocráticos de Teotihuacan, Monte Albán e Pachacamac, e das fortalezas megalíticas de Chicomostoc (Zacatecas, Mex.), Tzintzuntzan (Michoacan, Mex.), Paracas (Peru). Também fica por estabelecer em qual categoria se colocam os mochicas e Tiahuanaco (Bolívia) supostamente mais antigos que os anteriores.

Há aspectos de formação inicial e de desenvolvimento das cidades, assim como há o papel da urbanização na vida econômica, no que ela representa um mercado de materiais de construção, uma atividade construtora. Junto com isso, há a necessidade de superar alguns preconceitos da "visão européia" do processo, que tendeu a ver essa urbanização como um produto monumental de sociedades teocráticas. Os progressos dos estudos arqueológicos e da sociologia histórica encarregam-se de revelar a complexidade dessa urbanização, que afinal foi feita para os grupos de sociedades vivas.

O mundo feudal não mercantil foi, entretanto, relativamente muito urbano. Funcionou com muito artesanato especializado e com feiras de artigos domésticos, facilitadas por estradas hoje insuficientes, porém mais que adequadas ao tráfego de pedestres. Já se podem adiantar alguns conceitos sobre a urbanização dessas sociedades, que levam a trabalhar com a hipótese de que a urbanização pré ibérica teve características próprias e em todo caso, que se assemelhou mais da do Oriente Próximo que da européia. Mas apenas se percebe melhor o que ainda não se sabe. A urbanização pode ser uma chave especial de acesso à economia pré ibérica.


Uma inversão do olhar colonizador

A história da América pré ibérica, tal como a dos marginalizados pela expansão do capital mercantil, está quase toda por escrever-se. Enfrenta as dificuldades determinadas pela destruição de documentos e por preconceitos impostos pela legitimação da dominação. Terá que avançar na direção do passado, alargando sua base de referências, selecionando informações e estabelecendo hipóteses interpretativas, para reincorporar personagens que foram progressivamente excluídos. De qualquer modo, é preciso avançar no exercício de escavar esse subterrâneo da atualidade, para mostrar como ele é parte essencial da formação da atualidade.

Uma linha inevitável de argumentação desse estudo é a que liga o aumento de densidade demográfica às mudanças qualitativas dos assentamentos, que pode ser observada no contexto rural e na urbanização, em diferentes escalas. A conexão entre as migrações e o declínio dos maias e as migrações dos olmecas - da costa do Golfo do Mexico para o sul do altiplano - são dois exemplos a serem sempre considerados, mas não são os únicos. As migrações dos povos neolíticos terão que ser apreciadas com argumentos desse tipo, que poderão ajudar a entender o tecido geográfico dos assentamentos indígenas no escudo atlântico. É difícil imaginar que as migrações dos grupos tupis não estivessem ligadas a problemas ambientais de sua sobrevivência.

Além disso, falta esclarecer as relações entre as sociedades avançadas pré ibéricas e as sociedades neolíticas. Desde o período de Teotihuacan até o do Império Incaico, podem ser mapeadas relações entre os povos mais avançados e os mais atrasados, que fundamentam a principal hipótese da formação da Mesoamérica, como um conjunto de movimentos que convergiriam para o Vale do México, principalmente de movimentos norte-sul. Outros movimentos, das costas para o centro do México completariam esse modelo, que, apesar de tudo, parece demasiado simples e depende demais do poder de atração do centro do México. Como se outras regiões férteis também não cumprissem esse papel.

De qualquer modo, há uma hipótese central sobre Mesoamérica, onde os fatores climáticos permitem supor que essas relações tiveram sempre um movimento constante, entre os não sedentários do norte e os sedentários do centro. Essa hipótese encontra grandes limitações no relativo à origem e aos movimentos migratórios dos olmecas, que teriam aparecido na costa centro-sul do Golfo do México e teriam migrado ao altiplano sudoeste, encontrando-se nas camadas mais antigas de Monte Albán. Na realidade, o povoamento das regiões da costa do Golfo – norte, centro e sul – demanda outras hipóteses explicativas, Outros eventos do povoamento do centro-norte do México contrariam aquela hipótese, que, entretanto, permanece válida no relativo ao processo formativo das regiões centrais.

Na América do Sul parecem ter sido movimentos muito mais complexos, ficando ainda por determinar as influências indiretas da civilização andina.
[12] No relativo ao atual espaço brasileiro, há inúmeras indicações de contacto com o altiplano, que certamente terão tido algum papel na reprodução social de uns e de outros.

As sociedades americanas tiveram que responder aos desafios crescentes da concentração demográfica, em condições que levantaram dúvidas sobre suas escolhas iniciais de localização, especialmente sobre os lugares mais altos, acima dos 3.000 metros. Certamente, as tecnologias e a organização social puseram limites a essa concentração, que precisam ser melhor explicados. A principal pista é o controle do suprimento e da qualidade da água, que tomou características peculiares, segundo a altitude dos assentamentos e segundo sua localização em relação com fontes renováveis.

Mas esse aspecto da argumentação da concentração demográfica está sujeito a muitas qualificações, porque não sabemos como se processaram as condições de saúde pública. Sabe-se que as condições naturais de controle funcionaram melhor em ambientes sociais menos sujeitos à concentração de agentes conservantes de alimentos e de vestuário. Mas faltam-nos muitas informações sobre as modificações estruturais das cidades nos séculos XII e XIII, para podermos formar alguns juízos significativos sobre o papel das cidades de grande porte no movimento geral de urbanização.

As observações atuais sobre comunidades indígenas dão muitas pistas sobre esse tema, entretanto que devem ser tomadas com cautela, dada a acumulação de influências externas sobre elas. Tenochtitlán desapareceu e Cuzco tornou-se outra cidade. Por isso, o problema de pesquisa concentra-se, realmente, nos movimentos gerais de adensamento demográfico e de urbanização em sua relação com as soluções dadas aos problemas de alimentação. As comunidades indígenas situam-se como os elementos menos descontínuos de referência, apesar de terem sido parte da destruição sócio-cultural.


Referências bibliográficas

ALDEN MASON, J. The ancient civilizations of Peru, Penguin, Middlesex, 1969
ANDERSON, Perry, Passagens da antigüidade ao feudalismo, Afrontamento, Lisboa, 1982.
CARDOSO, Ciro Flamarion e BRIGNOLI, Hector, Historia econômica da América Latina, Rio de Janeiro, Graal, 1980.
CASTILLO, Bernal Diaz del , Histria de la conquista de Mexico, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1967, 2 vols.
COE, Michael, The maya, Penguin, Middlesex, 1966
CORTEZ, Hernán, Cartas y documentos, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1968.
DEPARTAMENTO DEL DISTRITO FEDERAL, Sistema hidráulico del Distrito Federal, México, 1981.
DISSELHOFF, H.D. Las grandes civilizaciones de la América antigua, Aymá, Barcelona, 1965.
ELIADE, Mircea, O mito do eterno reterno, Tempo Brasileiro, Rio de Janeirom, 1986.
Xamanismo, Siglo XXI. Mexico, 1975.
ECKSTEIN, Salomon, El ejido en Méjico, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1967.
ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 1978, 23 VOLS.
FRANKFURT, Henri at all., Before Philosophy, Penguin, Middlesex, 1964.
HARDOY, Jorge, SCHAEDEL Richard, Asentamientos urbanos y organización socioproductiva en la historia de América, Ediciones SIAP, Buenos Aires, 1968.
· Las ciudades de América Latina y sus áreas de influencia a través de la historia, Ediciones SIAP, Buenos Aires, 1975,

HARING, Clarence, El imperio hispánico en América, Buenos Aires, Solar/Hachette, 1966.

HEGEL, G.W.F., Lecciones sobre la filosofia de la historia universal, Revista de Occidente, Madrid, 1986.
HELFRITZ, Hans, Mexican cities of the gods, an archeological guide, Praeger, New York, 1968
HISTOIRE UNIVERSELLE, Encyclopédie de la Pléiade, Gallimard, Paris, 1956 3 vols.
JASPERS, Karl, Razón y existencia, Nova., Buenos Aires, 1956.
- Origen y meta de la historia, Revista de Occidente, Madrid, 1965.
KROPP, Miriam, Cuzco, window on Peru, Studio, New York, 1956
LAFAYE, Jacques, Quetzalcóatl y Guadalupe, la formación de la conciencia nacional en Mexico, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1977.
LE GOFF, Jacques, Reflexões sobre a história, Edições 70. Lisboa,
LIMA, José Lezama, La expresión americana, Madrid, Alianza Editorial, 1969.
MADARIAGA, Salvador de, El ciclo hispánico, Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1958, 2 vols.
MARX, Karl, El Capital, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1968.
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, Obras escogidas, Progreso, Moscú, 1974
MATOS, Eduardo, Moctezuma, O grande templo do Mexico, em O Correio, UNESCO, Rio de Janeiro, setembro, 1985,
MULLER, Herbert, The loom of history, Mentor, New York, 1961
PALERM, Angel , Obras hidráulicas pré hispánicas, SEP, Mexico, 1967.
Nuevas notícias sobre las obras hidráulicas pre hispánicas y coloniales en el valle de Mexico, Sep, Mexico, 1974.
PALERM, Angel, WOLF, Eric, Agricultura y civilización en Mesoámerica, Sep Setentas, Mexico, 1972.
PICÓN-SALAS, Mariano, De la conquista a la independencia, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1944.
POPOL VUH (anônimo) Las antiguas historias del quiché, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1952
PRESCOTT, William, La conquista del Peru, Bantam, N.York, 1976.
RIBEIRO, Darcy, As Américas e a civilização, Vozes, Petrópolis, 1986.
- O processo civilizatório, Vozes, Petropolis, 1987
- Os índios e a civilização, Companhia das Letras, Rio de Janeiro, 1996.
SOUSTELLE, Jacques, La vida cotidiana de los aztecas, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1972.
WOLF, Eric, Pueblos y culturas indígenas en Mesoámerica, Era, Mexico, 1962.
VAILLANT. G.C. Aztecs of Mexico, Penguin, Middlesex, 1966.
VEGA, Garcilaso de la, The Incas, Avon, New York, 1961.
VERNANT, Jean-Pierre, As origens do pensamento grego, Difel, São Paulo, 1984.
[1] Uma llama pode carregar uns 25 quilos, comparado com uns 50 que um homem pode carregar no altiplano e uns 100 que um burro pode suportar nas altitudes moderadas das civilizações do Oriente Próximo.
[2] Há uma notável semelhança entre certas modalidades de preparo de alimentos, enterrados e com calor na superfície, que se encontram desde o sul do Chile até o México, que são reconhecidas como de origem polinésia.Migrações polinésias à América têm que ser avaliadas à luz de informações sobre correntes marítimas e qualidade das embarcações.
[3] Cada um dos povos europeus conquistadores teve um projeto de poder a longo prazo em seu empreendimento colonizador, que ainda precisa ser melhor examinado como um conjunto. O projeto espanhol de poder foi bem apresentado por Salvador de Madariaga na visão espanhola e por Clarence Haring numa visão saxônica.O trabalho recente de Jacques Rufin apresenta, aparentemente por primeira vez, uma visão geral do projeto francês de colonização. No relativo ao projeto holandês, há uma obra extensa e consistente de Ewaldo Correa de Melo, numa perspectiva brasileira, mas não conhecemos um trabalho equivalente dos próprios holandeses. Em todo caso, está claro que o projeto holandês não pode ser reduzido às invasões no Brasil, mas compreende o conjunto das investidas nas Antilhas e na América Central.
[4] Nesse aspecto podem comparar-se sumérios e maias na relação entre sementes plantadas e grãos colhidos, que seria superior à média européia, segundo aponta a arqueologia.
[5] Língua hegemônica entre os grupos mexicanos do norte, mas não necessariamente a mais falada em Mesoamérica. O panorama lingüístico da metade norte da América apresenta inúmeras dificuldades, pela presença de grupos culturais sem relação aparente de antecedente – conseqüente e demandando explicações das estruturas de cada língua, num contexto que, certamente, não se encaixa no padrão continental eurasiano das grandes línguas indo-européias e semitas. Algo equivalente acontece no sul do continente americano, onde se encontram grupos, tais como os charruas e dos aimorés, que não se encaixam no grande conjunto tupi – guarani.
[6] Grupo de línguas da civilização maia
[7] Há um paralelismo entre a formação de Tenochtitlan e a de Roma, que em ambos casos foi feita por grupos pobres e retardatários que se instalaram em terras baixas e úmidas, começaram como auxiliares de grupos mais ricos instalados em terras mais altas e posteriormente tomaram seu lugar. Os senhores de Azcapotzalco tiveram papel equivalente ao dos etruscos; e tal como os sabinos, supriram seus primos pobres e aguerridos com reis para iniciar sua dinastia. Netzayalcoatl foi o Numa Tarquínio do Mexico.
[8] Cabe destacar a importância política de desconsiderar-se o fato de que esse navegador espanhol chegou ao Cabo Santo Agostinho no Nordeste alguns meses antes que Cabral, bem como de que a definição do império português no Brasil esteve longe de ser automática e gestou-se ao longo do século XVI.
[9] A concepção do tempo como tempo finito, constituído de ciclos de 52 anos, é um dos traços característicos dos mexicas, que deu sustentação a sua cosmovisão de ciclos de vida social, com uma semana de luto coletivo e com as cerimônias de acender o fogo e sacrifícios humanos, associados aos rituais para convencer o sol a retomar seu caminho diário.
[10] Convém ver O mito do eterno retorno de Mircea Eliade, tanto como seu Chamanismo. Essas obras trazem muitos pontos de afinidade para a construção de uma explicação do histórico das culturas andinas.
[11] Além de levantamentos, os trabalhos de Jorge Hardoy analisam a funcionalidade das cidades americanas, mostrando-as como genuínos produtos dessas sociedades avançadas, que também foram sínteses de processos pluri étnicos e pluri culturais. A análise do urbanismo americano ajuda a derrubar um dos principais mitos do colonialismo, qual seja, de que o planejamento urbano na América é uma contribuição exclusiva do racionalismo europeu, que as sociedades americanas tivessem ficado restritas às possibilidades de ordenamento territorial da ordem teocrática.O urbanismo em Cuzco e em Tenochtitlán representa uma condição de ordenamento dos espaços urbanos, que não pode ser restrito ao fundamento religioso e militar.
[12] Surpreende a freqüência com que se encontram no Brasil termos nitidamente andinos, incorporados como se fossem indígenas locais, ou sem origem conhecida, que aparecem em São Paulo.