sábado, 20 de dezembro de 2008

ARTIGO

A ECONOMIA DA TECNOLOGIA IMPERFEITA

Poderiam citar-se numerosos exemplos que sustentam
que o pensamento de Aristóteles
está impregnado da teleologia do trabalho.
A.Heller

Uma aproximação ao debate

O tema deste ensaio é o papel do valor social incorporado na tecnologia na configuração de alternativas de desenvolvimento para a economia de hoje. Entende-se que o papel da tecnologia na formação do sistema produtivo muda continuamente e que não pode ser adequadamente percebido enquanto não se reconstitui a inter-relação entre ciência e tecnologia. A técnica é um aspecto fundamental da vida social no que ela não pode deixar de ser ação encaminhada através de modos regulares de fazer o mesmo. No mundo antigo a técnica foi concebida como o modo como o trabalho pode ser dirigido por um principio do bem social. Na versão mais madura da leitura antiga do tema, a técnica em Aristóteles tem a conotação de um saber fazer reflexivo. A tecnologia, que seria o mundo das técnicas na linguagem de hoje, encerra uma teleologia do trabalho. Com Copérnico, a ciência adota um caminho em metodologia que abre espaço para uma tecnologia científica. Mais tarde, com o Iluminismo, a tecnologia descola de práticas místicas e se confunde com o nascimento da ciência.

No mundo da sociedade industrial moderna a técnica foi separada dessa dimensão reflexiva, tornando-se um modo de fazer destituído da possibilidade de sustentar uma consciência crítica do mundo. Na sociedade industrial aparece uma valorização da técnica como campo preferencial comparada com uma ciência teórica supostamente distanciada do mundo da prática. A situação mais avançada dessa separação é o uso racional da tecnologia pelos regimes de força. Destituída de seu fundamento em juízos de valor, a tecnologia torna-se o fundamento de um mercado socialmente imperfeito.

Na Economia Política a tecnologia aparece sob luzes muito diversas, segundo é vista na perspectiva do funcionamento do sistema produtivo em seu conjunto, na de uma teoria do investimento, na da engenharia da produção, ou ainda, segundo se reflete na perspectiva do efeito emprego da formação de capital. Na linguagem comum do desenvolvimento industrial, a tecnologia ficou basicamente associada a engenharia e seus objetivos já estariam pré-determinados como de resolver problemas operacionais do sistema produtivo. Em todo caso, o papel da tecnologia na economia não se desvencilha de duas referências principais, que são as condições de mercado e os mecanismos de poder.

No campo da análise econômica oficializada definiu-se uma diferença marcante entre a postura dos pós-keynesianos da primeira hora como Joan Robinson e Nicholas Kaldor, que se ocuparam do movimento geral da tecnologia e dos neo-schumpeterianos como Richard Nelson, que identificam progresso técnico com inovação. Para os primeiros, o progresso técnico é o meio por excelência de transformações do sistema produtivo, mas deixa indeterminado qual progresso técnico e em qual momento do sistema produtivo. A visão neo-schumpeteriana desdenha ou ignora o os efeitos inerciais da operação das técnicas já incorporadas na produção, que seria o equivalente ao espaço negro da Física. Ambas as posturas são inadequadas para uma teoria do desenvolvimento, que tem que se ocupar dos processos sociais de apropriação de tecnologia. Tal apropriação não é perfeita, primeiro porque jamais acontece em condições de concorrência perfeita e segundo, porque se torna um poderoso mecanismo de poder. A imperfeição da tecnologia decorre de sua impossibilidade de se reproduzir por seus próprios meios, sem a ajuda de uma racionalidade anterior. Tal racionalidade é a do sistema de poder incorporado na indústria em seu sentido mais amplo, que se projeta sobre os rumos dos investimentos industriais, inclusive daqueles que se transformam em despesas, públicas e privadas, com a atividade científica. Mas a função tecnológica obriga a um retorno das decisões políticas a opções práticas organicamente incorporadas ao sistema produtivo.

Um debate radical sobre o significado social da tecnologia tornou-se imperativo desde que ela foi apropriada por cientistas de origens diversas interessados em usá-la para seus próprios fins políticos. Esta observação não é uma declaração weberiana sub-reptícia por uma ciência neutra, senão de assinalar o processo de controle sutil da produção científica e de seus desdobramentos tecnológicos, por parte do bloco de poder prevalecente. Tanto como a tecnologia regula as condições materiais do uso de trabalho, ela constitui a referência da divisão do trabalho e do modo de remuneração dos trabalhadores empregados. Por isso, desde o capítulo seminal de Ricardo sobre este tema, tornou-se clara a necessidade de reconhecer que há um determinado processo de substituição de técnicas que acompanha a formação de capital e que esse processo aparece, alternativamente, como positivo, neutro ou negativo em relação com a criação de empregos. Os efeitos negativos do progresso técnico se traduzem em queda da taxa de salário na distribuição da renda.

A rigor, questionar o significado social da tecnologia implica em rever o fundamento de classe do autoritarismo lógico que preside a ciência burguesa (Adorno, 1986). Além disso, por reconhecermos a situação histórica do trabalho científico, trata-se de ver a produção científica como parte do trabalho social, no sentido hegeliano de universalidade do trabalho e de interdependência sócio-histórica de todos os trabalhos
[1]. Define-se, portanto, que o debate sobre tecnologia se desenvolve sobre um fundamento filosófico irredutível, onde se adverte o papel dos processos da tecnologia na inter-relação entre a sociedade e a natureza e nos movimentos combinados e contrários de valorização social e de desvalorização.

Pretendemos aqui esboçar uma reflexão crítica sobre as condições sociais da produção e do uso de tecnologia na sociedade globalizada de hoje, especialmente, no alargamento ou no estreitamento do horizonte de possibilidades de superação das tendências à desigualdade, inerentes à economia mundial. Nesse intento, tratamos a tecnologia como um processo inerente às transformações do sistema produtivo, que se configura como resposta a necessidades práticas do funcionamento do sistema produtivo. Assim como é ingênuo supor que todas as idéias tecnológicas são novas, é igualmente simplório não perceber que as soluções de problemas técnicos se situam em um nível geral de desenvolvimento do sistema produtivo. No linguajar da Economia Política, diremos que as tecnologias atuais correspondem a uma composição do capital, inclusive a uma capacidade da sociedade de mobilizar conhecimento existente para novas finalidades. Trata-se, portanto, de conhecimento adquirido e de poder para usar conhecimento.

Tal abordagem implica em trabalhar com a relação entre ciência e tecnologia e com a relação entre modelo político e políticas tecnológicas. A produção científica acontece em determinados contextos de poder, em que sempre houve um jogo entre os interesses dos cientistas e o acesso ao poder – Arquimedes e Hierão de Siracusa e Einstein e Roosevelt – e um jogo dos poderosos de usarem talento criativo para reforçar seu poder: os Visconti e Leonardo da Vinci. O desenvolvimento de tecnologias da era da produção industrial logicamente responde à aceleração do tempo causada pela automação. A ligação entre ciência e tecnologia tornou-se mais indireta e mais distante, entretanto mais profunda e conseqüencial. Passou-se a precisar de uma concepção de ciência capaz de gerar tecnologia e de uma tecnologia de base científica
[2]. Frente à separação entre ciência e tecnologia propõe-se uma abordagem baseada na composição de ciência e tecnologia onde há um desenvolvimento combinado das duas.

A primeira distinção entre ciência e tecnologia está em seu sentido de finalidade. A ciência pode aspirar a ser um conhecimento independente de finalidade imediata – apesar do controle do Estado e das empresas sobre a produção científica – mas a tecnologia, por definição, é um conhecimento direcionado para obter resultados específicos na esfera da produção. Há uma dupla relação entre ciência e tecnologia, em que há uma aparente separação entre esses dois campos relativa ao seu sentido de finalidade e uma conexão real dada pelo controle do Estado e das empresas sobre a produção e os usos de conhecimento, apesar das possibilidades de uma atividade científica ideologicamente independente. Paralelamente, há uma pretensão da esfera tecnológica de progredir como um campo separado, ou com regras diferentes daquelas da ciência, mas essa é uma separação que esgota as possibilidades de expansão criativa da tecnologia.

Assim, torna-se necessária uma leitura crítica da tecnologia, numa perspectiva histórica da atualidade. A expressão tecnologia transmite uma noção de poder associada ao pressuposto de que ela corresponde a algum tipo de poder sobre a natureza, derivado de um saber prático socialmente incorporado. Nesse sentido, a tecnologia será um saber prático compartilhado por uma certa comunidade – ostensiva ou não – que representa um processo de apropriação de recursos naturais, mediante a capacidade de comandar trabalho. Assim, a tecnologia é poder em dois sentidos: no poder positivo de fazer algumas quantas coisas e no poder negativo de separar essa capacidade de fazer de seu fundamento doutrinário inicial, isto é, de seu fundamento científico.

Aqui olhamos, portanto, para a tecnologia como para um segmento do processo de produção que se realiza em partes da sociedade que concentram poder e que também têm a capacidade de administrar a distribuição sodcal do poder. As decisões sobre os usos de tecnologia, já sejam elas conscientes ou não, são essenciais ao modo de desenvolvimento do sistema em seu conjunto. É preciso certo nível de desenvolvimento do trabalho para gerar tecnologia e é preciso certas outras condições de inserção dos trabalhadores no sistema de produção para que se absorvam tecnologias.

Revela-se, portanto, uma identidade social dos processos da tecnologia. Longe de vê-la por seus aspectos terminais, mecânicos, da engenharia de processos de produção, procura-se vê-la como processo social de poder, cujas materializações são socialmente controladas. Tanto como a tecnologia é o meio operacional de realizar os processos de produção necessários à reprodução do capital, o controle social da tecnologia é, também, o controle dos rumos da acumulação de capital, pelo que é preciso analisar a transformação por seus efeitos dinâmicos sobre o futuro do sistema produtivo e não só por seus efeitos diretos e indiretos imediatos.

Nas sociedades industriais as tecnologias são desenvolvidas para responder a interesses organizados, que se manifestam desde o nível mais amplo das decisões financeiras do grande capital até as decisões operacionais das empresas. Essa cadeia de decisões alcança os pequenos produtores e inclusive aqueles que operam em forma local e nos espaços da chamada economia solidária. Mas seu desenvolvimento depende de um fundamento científico e de uma pesquisa operacional que se realiza na esfera das empresas, isto é, uma pesquisa a que têm acesso aquelas empresas que operam no nível das que têm a capacidade de renovar tecnologia. Está implícito que a capacidade de se renovar em tecnologia não só é desigual como está restrita a aquelas empresas que têm acesso a laboratórios de ciência e de fábrica. A grande alternativa têm sido as universidades, onde em muitas delas surgem projetos que podem ser considerados detentores de uma perspectiva não controlada e potencialmente renovadora.

No desenvolvimento da sociedade capitalista moderna há uma aparente separação entre ciência e tecnologia, que dá lugar a uma “lógica” da tecnologia diferente da lógica da ciência, que seria a produção de conhecimento. A lógica da tecnologia seria de exploração do potencial operacional do conhecimento, independentemente do significado inicial desse conhecimento, considerando que o significado do conhecimento muda ao longo do tempo. Por conseguinte, pode-se argüir que a lógica da tecnologia é, em última análise, uma lógica dependente daquela da ciência. Mas essa separação é apenas superficial, pela simples razão que o desenvolvimento basilar da ciência, como mostrou Whitehead (1949) gira em torno de problemas fundamentais e de respostas que dão continuidade à reflexão criativa.

Surge, portanto, uma questão incontornável, que se refere ao papel da tecnologia na reprodução da produção capitalista em seu conjunto e em seu sentido mais amplo, que é um papel no encadeamento do processo e não apenas de ver os efeitos da atual tecnologia na atual produção capitalista, portanto, de visualizar o papel da produção social de tecnologia na produção social em seu conjunto. Noutras palavras, descobre-se uma função mais profunda da tecnologia, que é de se desenvolver de modo complementar com a ciência, ou de realizar a ligação entre a pesquisa científica e o mundo das práticas.

A questão fundamental que nos guia nesta pesquisa consiste em reconhecer que a produção capitalista acentua uma tendência inerente aon movimento do capital em geral no mercado, que procura respostas mais eficientes à captação dos resultados do trabalho, tanto diretamente na produção como indiretamente, através dos sistemas de comercialização. Daí, que o processo social da tecnologia seja um processo induzido pelo movimento da formação de capital e esteja situado no contexto político do poder.

A produção social de tecnologia é uma combinação de reavaliações de aspectos positivos e negativos das técnicas e das combinações de técnicas segundo os interesses imediatos do capital e o potencial de conflito que sua aplicação revela. A noção de que esse processo envolve riscos de diversos tipos precisa ser revista. Custos sociais e riscos estarão envolvidos na escolha e na aplicação de técnicas em todos os níveis de complexidade em que operam as sociedades de hoje. Mas há riscos que surgem do que se decide fazer e riscos que decorrem do que não se faz. A passividade frente aos problemas do eixo ciência-tecnologia torna-se um fator de envelhecimento da pesquisa e do ensino e dá lugar a soluções superficiais e parciais como aquelas que podem ser realizadas no plano dos trabalhos interdisciplinares. A insistência no tratamento de alguns problemas básicos pode ter resultados inquestionáveis, por exemplo, como os alcançados por Piero Sraffa com um livro que tardou quarenta e dois anos para ser terminado. A partir daquela reflexão passamos a pensar em termos de blocos tecnológicos e de momentos do desenvolvimento da tecnologia que explicam as posições relativas de preços das mercadorias.

O humanismo negativo da eficiência na redução do emprego

O questionamento sobre tecnologia é indissociável de um princípio geral de eficiência, que aparece na forma também geral de produtividade ou como uma economia força ou como uma economia de trabalho. A eficiência é um principio imponderável que sintetiza as relações entre quantidade de recursos e resultados e entre resultados quantitativos e qualidade dos resultados. Mas, em um sistema social, a eficiência, como mostrou Marx, depende do ajuste entre os novos componentes do capital e os que já se encontram em operações. A eficiência não é um principio socialmente neutro. Assim, é uma referência móvel que nos indica em que direção o sistema se move, através de certas seqüências de seleção de técnicas.

Quando confrontada com efeitos sociais, a eficiência torna-se uma medida do capital sobre o conjunto das pessoas que precisam trabalhar para viver, já seja que estejam ocupadas ou não. A eficiência surge do controle do trabalho. Por isso, na produção capitalista a eficiência indica a capacidade dos capitalistas de manejar os trabalhadores do mesmo modo como a mobilidade registra o interesse dos trabalhadores. Nesse contexto, a noção de necessário corresponde a situações específicas de reprodução do capital em que se trabalha com situações equivalentes de tecnologia.

A sociedade do capital não tem uma resposta socialmente convincente para o fato de que a formação de riqueza no ambiente da produção industrial se faz mediante uma lógica de eficiência que substitui trabalho vivo por trabalho morto, que aumenta a eficiência final do trabalho reduzindo o número de trabalhadores empregados, bem como reduzindo a intensidade da ocupação dos que permanecem engajados na produção. Os trabalhadores são convidados a se identificarem ideologicamente com as empresas e são instados a arcarem com os custos de seu próprio aperfeiçoamento e atualização, que são requisitos formais mínimos de emprego
[3] . Mas são padrões de qualidade do trabalho aferidos frente a conjuntos de tecnologias que serão superados. Em cada situação o uso de tecnologias é uma imposição sistêmica, que passa aos diversos integrantes do sistema definindo uma linha de sobrevivência, convertendo-se em pauta de comportamento nas relações entre capital e trabalho. Assim, a renovação tecnológica torna-se uma extensão da divisão do trabalho, com o poder de pré-determinar a distribuição da renda. Para descobrir o significado social da renovação tecnológica teríamos que ligar este impacto na distribuição da renda com a queda do multiplicador do emprego. O movimento geral da tecnologia reaparece como um movimento de controle indireto dos trabalhadores através da incerteza de sua renda.

Distinguiremos, portanto, um significado social conseqüente da mecânica da substituição de técnicas e um um fundamento ideológico, dado pela preferência do capital por estratégias de defesa da taxa de mais valia baseadas no controle do efeito emprego da renovação técnica, comparadas com outras possíveis estratégias voltadas para a seleção de composições alternativas de capital. Nesta perspectiva, o emprego não é apenas uma fonte de renda: é o modo de identificação das pessoas como trabalhadores e mais, como detentores de uma identidade que emana de sua capacidade atual de vender seu tempo e de sua capacidade de se separarem da lógica do capital mediante estratégias de mobilidade. A tendência geral à diminuição do efeito emprego dos investimentos coloca a tecnologia como uma ferramenta de poder que se administra de modo diferenciado, segundo a composição do emprego corresponde a diferente capacidade das pessoas de sobreviverem sem a dependência do emprego e de serem capazes de chegar a pautas independentes de comportamento.

Na sociedade da produção industrial avançada, tanto nas economias centrais como nas periféricas, a produção se torna mais internacionalizada e com um componente maior de serviços, e, principalmente, com um descolamento do capital financeiro especulativo frente à circulação financeira do sistema produtivo. Este perfil de funcionamento do capital significa modos mais indiretos de controle do trabalho, que não é imaterial nem muito menos, mas que muda constantemente de composição, segundo mudam os requisitos de qualificação dos trabalhadores
[4]. A criação de valor se faz mediante relações de produção que se tornam mais complexas e indiretas, mas que abrangem o conjunto das etapas de produção, desde as mais simples até as que aparecem no mercado na forma de serviços. A grande novidade desse sistema é a diluição das decisões do grande capital, onde a maior concentração em menor número de empresas corresponde a maior peso de investidores individuais no mercado financeiro. Surgiu de uma brecha no funcionamento do capital financeiro que, com a atual crise em marcha, deixou o sistema bancário em dependência mais direta de intervenções estatais. A configuração desses novos limites da operação do capital financeiro coloca a questão da tecnologia sob nova luz, obrigando a rever seu fundamento político.

A dimensão política do processo técnico

Como processo técnico aqui se entende o modo como a sociedade resolve seus problemas práticos de produzir e de consumir. Produção e consumo estão atrelados a formas de organização de transportes e de energia estratégicas nas conexões entre produzir e consumir. A produção de serviços é parte da produção de bens e vice versa.

O processo técnico se materializa assumindo diversas formas, com variada abrangência no sistema produtivo e com diferente duração, na reprodução do sistema produtivo em seu conjunto. O processo técnico é ativado por demandas sociais estabelecidas pela sobrevivência e por aquelas outras ditadas pelos interesses na acumulação de capital. Assim, o processo técnico concreto é um processo social que carrega a intencionalidade das ações dos grupos que controlam o capital. A questão social da tecnologia, portanto, se remete ao modo como a estruturação social se resolve numa organização social de controle do processo técnico, ligando a renovação tecnológica à valorização e à desvalorização, frente à percepção da descontinuidade inerente ao modo como o sistema produtivo escolhe produtos e cria novas necessidades, Assim, longe de pensar no processo técnico como algo separado da lógica da acumulação de capital, se focaliza nas inter-relações entre as necessidades específicas dos capitais individuais para se recomporem e as condições gerais de reprodução do sistema produtivo no ambiente econômico e político em que eles operam. Daí, decorre que há diferentes políticas tecnológicas dos diversos produtores individuais, que operam, de modo interativo, no mercado de tecnologia onde, entretanto, predominam aqueles poucos agentes que chegam a ganhar e a manter posições vantajosas no aproveitamento da tecnologia como meio de operacionalizar a acumulação. O potencial político da tecnologia aparece, portanto, nas relações de poder entre produtores e usuários de tecnologia, desdobrando-se em relações na esfera dos que têm a capacidade de intervir na produção de tecnologia e na esfera dos que têm acesso restrito ao seu uso. A questão já citada de elevação tecnológica em todos os níveis operacionais do sistema produtivo torna necessária uma política de desenvolvimento tecnológico direcionada para remover problemas e não apenas para atender demandas circunstanciais de empresas.

Em sua condição de saber técnico localizado, a tecnologia é socialmente inerte. Mas, com seu fundamento cientifico e com o reconhecimento de sua inserção social recupera seu potencial criativo, podendo ser referência para a própria pesquisa científica. Na prática, a tecnologia se torna socialmente significativa quando se define seu fundamento político. Tanto como o controle da tecnologia é uma manifestação de poder, a tecnologia em si só é socialmente significativa quando é absorvida pelo sistema político; e se converte em instrumento de uma relação específica de poder. O poder de conduzir a movimentação da tecnologia é o poder de controlar as relações entre capital e trabalho em torno de empreendimentos ativos. Essa relação de poder é o verdadeiro centro das políticas de ciência e tecnologia, que permite dar unidade a iniciativas em um campo tão variado.

O substrato político da tecnologia aparece nas orientações de política tecnológica, no modo de conduzir as relações entre Estado e empresa e nas relações entre empresas que têm diferentes condições de participar no mercado. Não há fundamento para que se pense em termos de monopólio natural, mas sim de que se reconheçam os efeitos da concentração de capital nas iniciativas em tecnologia. O mercado da produção de tecnologia é basicamente um mercado oligopolístico organizado em forma de pirâmide, onde o topo é ocupado por um pequeno número de empresas que operam com alta tecnologia. Será preciso distinguir entre as empresas que são capazes de produzir tecnologia, portanto, que podem vender tecnologia como mercadoria; as empresas que dispõem de recursos suficientes para manterem-se atualizadas comprando tecnologia e as que operam em faixas de mercado marginalizado com tecnologias dominadas. Essas diferenças de condições de participação no mercado indicam condições de controle sobre a capacidade explorar os usos das técnicas conhecidas, isto é, avaliar experiências e resumem um poder incontestável sobre as opções de mobilidade dos trabalhadores
[5]

As condições de participação dos trabalhadores são conseqüentemente diferenciadas. Nas primeiras há espaços de trabalho em expansão, portanto, há condições que podem ser aproveitadas pelos trabalhadores para ganharem mobilidade mesmo que seja apenas em condições temporárias. Na terceira o trabalhador é reduzido à condição de meio de produção e suas chances de ganhar mobilidade são praticamente nulas. Em ambientes de intensa renovação técnica tem que haver correspondente renovação da qualificação, pelo que, mais uma vez trata-se de um pacto de poder consentido ou conflitivo.

A movimentação da tecnologia representa um pacto do bloco de poder, entre interesses de empresas e de capitalistas individuais – operando através dos mecanismos impessoais do mercado - que procura garantir o controle da acumulação através do controle das variações de produtividade. O reconhecimento desses processos leva a uma excursão pela teoria Política em que se procura passar dos aspectos superficiais da renovação tecnológica aos seus aspectos mais profundos.
Informação na tecnologia : a autoreflexão do conflito negado

Em sua qualidade de instrumento de uma determinada política de investimento, isto é, em sua condição de instrumento de um determinado movimento do capital, a tecnologia se torna a expressão de uma forma de controle social e de recursos, por isso, encobrindo uma relação capital/trabalho penetrada pela meta do capital, de reduzir a participação do trabalho na renda e uma relação socialmente conflitiva com o ambiente, dada pela tendência ao desgaste de recursos não renováveis. Nesse ponto se delineia uma nova função do Estado, que compreende identificação de objetivos em longo prazo, iniciativa na articulação entre as esferas pública e privada.

A principal questão no debate sobre tecnologia no discurso da operacionalidade é que esse fundo de relações conflitivas é negado pelo discurso da operacionalidade e que a tecnologia é apresentada apenas em sua positividade, que é a perspectiva do capital investidor. O reconhecimento da tecnologia como um campo conflitivo em que há disputas entre técnicas soma-se à compreensão do mercado como um campo de força, onde se ajustam interesses contraditórios. O uso de tecnologia é o meio pelo qual as empresas fazem valer seu poder de escolher processos de produção e modos de comercialização. Por isso mesmo, é uma linha de choque de conflitos de interesses.

A sucessão de escolhas sobre tecnologia em geral compreende escolhas de soluções técnicas específicas e de escolhas de tecnologias, e resulta em seqüências de decisões interdependentes que levam, objetivamente, a trajetórias de modos tecnológicos de operar, que condicionam cada nova decisão nesse campo. Há, portanto, uma questão relativa ao conhecimento do processo da tecnologia em seu conjunto, como parte da dimensão subjetiva desse processo, e uma questão relativa a informação da tecnologia, que se converte em instrumento da própria política tecnológica.

A opção entre uma teoria positiva e uma teoria dialética da tecnologia consiste em que a primeira vê a tecnologia como uma seqüência de fatos consumados, enquanto a segunda vê os processos sociais que geram tecnologia e que conduzem a superação de tecnologias. Para a primeira a tecnologia é um fator de produção, isto é, substitui trabalho num movimento unilateral que materializa o controle do capital sobre o trabalho através do processo de produção. Para a segunda, a tecnologia representa a relação conflitiva entre os interesses do capital e os do trabalho, onde os trabalhadores são forçados a se adaptarem aos deslocamentos nos requisitos de qualificação que são passados ao mercado de trabalho pela política tecnológica. Ao mergulhar nos processos sociais da renovação tecnológica encontra-se que a imperfeição da tecnologia também resulta em um direcionamento do progresso tecnológico que o torna indiferente aos resultados sociais da tecnificação da produção. A queda do efeito emprego dos investimentos ou a perda de mobilidade dos trabalhadores são aceitos como inevitáveis, mas não se penetra nas razoes que fazem com que isso aconteça. A revitalização da tecnologia implica em voltar aos seus fundamentos e questionar seu sentido de finalidade. Por isso, e para situar o desenvolvimento da tecnologia frente a necessidades específicas da reprodução do sistema produtivo em sua composição de hoje, tornam-se imperativas novas iniciativas do Estado, na identificação de setores estratégicos e na formação de quadros técnicos especializados, capazes de conduzir a política de tecnologia.


Bibliografia

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Notas

[1] A noção de trabalho universal historicamente constituído já se encontra plenamente desenvolvida na Fenomenologia do Espírito (2003), mas recebeu um tratamento mais explícito nas Lições sobre a filosofia da história universal (1986) e um desenvolvimento adicional, na articulação da filosofia da natureza com a filosofia do espírito, na Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1997). Na visão de Hegel o trabalho universal não está socialmente diluído. Pelo contrário, ele carrega todos os significados da interdependência que faz com que o trabalho de um escultor corresponda a uma compreensão estética de um arquiteto e onde a engenharia militar responde a uma compreensão de autoridade e de Direito. O trabalho universal sustenta uma capacidade de perceber problemas fundamentais e, portanto, de praticar uma filosofia historicamente conseqüente.
[2] A ciência antiga, tal como foi codificada por Aristóteles, foi um corpo de conhecimento operacional que tinha a técnica incorporada. Era plenamente consciente da técnica enquanto modo visível dessa operacionalidade. Nesse plano, a discussão da tecnologia é uma continuação do debate sobre o fundamento epistêmico da ciência, onde ciência é sempre um conhecimento de princípios generalizáveis e consistentes. Daí, o esforço de Aristóteles de separar o mundo da ciência de tudo que é contingente. Veremos que há um retorno a essa posição no que vem sendo a ciência ultra-moderna que procura se separar das simplificações do Iluminismo.
[3][3] Será preciso retomar a linha de argumentação Jean Paul de Gaudemar sobre a mobilidade do trabalho na acumulação de capital, onde se consideram condições cambiantes de mobilidade para diferentes tipos de trabalhadores e onde o movimento de acumulação de capital implica em alterações nas condições de mobilidade de diferentes grupos de trabalhadores.
[4][4] Não se pode ignorar a contribuição de André Gorz a este debate (2003; 2005) mas tampouco há fundamento na sociedade ultra-moderna do capital para admitir um descolamento real entre o trabalho direto e o indireto e entre o trabalho engajado na produção de mercadorias palpáveis e o trabalho que faz serviços. A esfera do suposto imaterial de que nos fala Gorz reflete de fato uma determinada modalidade de deshumanização da economia que não se sustenta mais que o capital especulativo sem fundamento na produção.
[5] No que denomina de despotismo da fábrica, André Gorz (2001) argumenta que a escolarização não incorpora objetivos de qualificação efetiva das pessoas, mas que responde sempre a momentos anteriores de tecnologia ou aos objetivos de fragmentação do trabalho. Diremos que há uma diferença fundamental entre visão de totalidade, tal como em clínica geral, e ensino de generalidades.