sábado, 19 de junho de 2010

A PASSAGEM DE PREBISCH

A PASSAGEM DE PREBISCH


Raul Prebisch (1900-1986), tucumano além de argentino, a que uma educação européia não retirou a americanidade, representou uma ponte entre a tradição e a modernidade, entre o nacionalismo e a solidariedade internacional. A corrente de interpretação que ele representou surpreendeu e incomodou os saxões que se sentiam proprietários da teoria econômica e aos seus acólitos adoradores do Império que não podiam tolerar a idéia que a única contestação à economia da hegemonia surgisse no quintal político dos Estados Unidos. A CEPAL de Prebisch rompia a ordem não escrita do mundo oficializado da ciência social que se levava a sério os produtos da academia de alguns países europeus e norte-americanos. A CEPAL seria uma divergência ou uma proposta genuinamente nova. As lutas políticas das décadas seguintes mostraram que essa dissidência burguesa tinha a capacidade enfrentar as forças políticas tradicionais apesar de não representar as correntes revolucionárias do continente.
A história de Raul Prebisch não se acaba facilmente. O magnetismo pessoal que ele irradiava sempre fez com que ao seu redor girassem figuras auxiliares atraídas por sua energia, aceitando o ônus de seu temperamento caprichoso, tolerando seu purismo lingüístico e suas críticas mordazes, admitindo que seu poder de síntese o colocava à frente dos seus congêneres. Despertava sentimentos contraditórios na CEPAL que criou. Anibal Pinto, de quem ele gostava, chamava-o de latifundiário intelectual. Benjamin Hopenhayn, que o seguia e de quem ele gostava,criticava sua ambivalência entre técnico e político. Os espanhóis, Paco Giner, Cristobal Lara, José Medina, viam nele um líder continental. Maria da Conceição Tavares, de quem ele não gostava, tornou-se sua admiradora depois que ele morreu. A maior parte dos seus colaboradores tinha medo de sua capacidade inesgotável de dizer a verdade frontalmente.
Prebisch trabalhou para uma América Latina desvencilhada do imperialismo e, ao longo da vida, migrou para posições mais nitidamente socialistas, mas não cruzou a linha que separa a perspectiva burguesa da dos trabalhadores, avançando tanto quanto seria possível para criar condições para reverter a marcha do grande capital.
No segundo semestre de 1970 Prebisch empreendeu o que deveria ser seu maior trabalho, mas que foi interrompido por uma aposentadoria intempestiva e por pressões políticas. Tratava-se de um trabalho que deveria substituir o famoso Estudo da América de 1949 que veiculou sua teoria da relação centro-periferia. Para isso mobilizou vinte economistas e sociólogos, que organizou em dois grupos de dez, em que um grupo deveria produzir textos sintéticos sobre cada país da região e os outros dez deveriam produzir textos que trouxessem as principais contribuições recentes à teoria. A iniciativa revelava o pressuposto de um atraso em relação com a produção científica e ao mesmo tempo uma total disponibilidade para modificar os parâmetros dos documentos anteriores. A impossibilidade de levar a cabo um empreendimento dessa envergadura revelou as enormes divergências ideológicas que tinham se acumulado nesse espaço da burocracia técnica internacional. A CEPAL perdera a primazia na análise e na política do desenvolvimento que já estavam polarizadas entre o avanço de uma direita mobilizada durante a Guerra Fria, uma soclal-democracia incipiente e uma esquerda dividida. Foi um anúncio trágico das sucessivas divisões que marcariam a tentativa de governo socialista de Allende. De fato, comprovou-se que já se tinha fechado o ciclo de um esforço renovador e que os órgãos internacionais tinham pouco a oferecer como apoio aos movimentos nacionais. Uma crítica do Instituto de Economia da Universidade do Uruguai identificava os termos de uma análise de esquerda do problema latino-americano.
Quando aconteceu o enfarte que o vitimou, Prebisch estava em uma assembléia das Nações Unidas. Conseguiu chegar de volta a Santiago, foi à CEPAL apertar a mão dos seus colaboradores, técnicos e pessoal administrativo, e se recolheu à casa do Cajón del Maipo para morrer,

segunda-feira, 14 de junho de 2010

CRÔNICAS AMERICANAS 5

Um balcão sobre a barbárie II

A barbárie é um tema recorrente entre nós, é um enigma da América, onde ela aparece como um contrário da brutalidade oficial da civilização européia, ou como uma afirmação de valores tribais americanos. Toda vez que tocamos nesse tema fica a sensação que devemos uma referência honrosa a Cornelios Castoriades, mas não se pode esquecer que a leitura crítica foi posta na mesa por Marx. Não somos bárbaros por não sabermos falar grego, mas por darmos espaço a modos instintivos de ser e de fazer política. Os massacres cometidos pelos europeus e pelos governos americanos arvorados em herdeiros da Europa, tanto norte-americanos como sul-americanos – jamais foram cognominados de bárbaros, Fora ficam o massacre dos yaquis no noroeste do México e dos araucanos no sul do Chile e da Argentina e inúmeros outros eventos de enfrentamento da civilização com os bárbaros. Os massacres cometidos pelos governos autoritários sobre as classes médias urbanas e os trabalhadores rurais nas recentes décadas passadas foram manifestações de barbárie introvertida, porque a maioria dos torturadores era parte desses mesmos grupos sociais. A violência represada e aproveitada pelos grupos de poder acuados está no centro do problema. A polêmica acerca da barbárie está no fundamento da versão americana de civilização, sobre a qual se debruça o conflito entre a renovação do colonialismo e as manifestações de identidade. Um tecido esgarçado mas que se afirma como portador de autonomia e de personalidade cobre os movimentos sociais e os do povoamento. No diálogo latino-americano sobre o binômio civilização e barbárie certamente estão alguns pensadores que delimitaram o campo operatório da análise. Destacam-se Leopoldo Zea e Darcy Ribeiro, com diferentes tratamentos do objeto histórico, diferente corte ideológico, mas que não ligaram o fluxo do pensamento ao da história, tal como fizeram outros, menos abrangentes porém mais reveladores, como Picón Salas e José Luis Romero. Os bárbaros estão livres para serem sinceros e emocionais. Os civilizados são contidos, reprimidos e insuportavelmente racionais. Os bárbaros se dispõem a triunfar ou morrer por ideais, que são artefatos incômodos para os civilizados, que decretaram o fim das ideologias. Na América descobre-se que há várias Américas, várias delas indesejáveis, outras que nos invadem pelos ralos do fanatismo conduzido.

O manuseio da barbárie como categoria diferenciadora da cultura latino-americana, tal como fez Halperin Donghi, fomenta um estilo americano de leitura da história que levanta criticamente suas ascendências burguesas. Nesta leitura o racionalismo aparece como um maneirismo europeu do Iluminismo, assim como o positivismo é um produto importado da França, tanto como o pragmatismo é um cacoete norte-americano. Em economia o positivismo marcou um retrocesso na criatividade da teoria, que ficou nas mãos estéreis dos neoclássicos. Uma visão americana da história não pode ficar presa ao norte-americanismo de Braudel, nem à surpreendente admiração de Gramsci pela América (do norte), mas deve procurar os fios condutores entre a América das civilizações anteriores e a das atuais. A barbárie não é nenhuma virtude, mas simplesmente descreve a irracionalidade do colonialismo. Tratar com ela é um modo de fazer história interna da América Latina.

domingo, 11 de abril de 2010

CRÔNICAS AMERICANAS 4

Um balcão sobre a barbárie

Invocaremos a Sibila, o oráculo de Delfos, as sombras do Hades e em igual importância As Almas dos Santos Vaqueiros e as sombras dos caciques mortos na luta contra os invasores barbudos, assim como os Meninos Heróis que enfrentaram os fuzileiros navais quando eles se revelavam como bandidos saqueadores dos Salões de Montezuma. Invocaremos os camponeses heróis do trabalho anônimo espelhados por Hesíodo antes que por Homero e ao descobrir o heroísmo sombrio de Lautaro e de Condorcanqui estaremos apenas reverenciando os pais fundadores de uma América que foi gestada por americanos. Denunciaremos os assassinatos e as torturas impulsivamente cometidos por colonizadores e friamente praticados por esbirros de ditaduras inomináveis. Pediremos a fúria dos céus para eles, porque os fratricídios foram condenados até pela Bíblia quando menos por livros sagrados mais sagrados. Depois pensaremos em quanto mau gosto fomos obrigados a engolir e quanto fomos prejudicados pelas diversas iniciativas religiosas colonizadoras, assim como fomos sutilmente encaminhados a intercâmbios como aqueles que foram inventados pelos faraós e que fazem com que nossos jovens sejam alienados de por vida. Descobriremos que alguns de nossos poetas foram profetas, que as ODAS A LAS ESCALINATAS e que a LADERA ESTE foram revelações de uma alma indígena americana mundial que se descobre entre civilizações. Nosso mundo se recompõe entre galerias dentro de palácios que pareciam maciços, onde deuses enojados do cotidiano se retiravam para meditar sobre o passado, entendendo que só há futuro quando ele é construído. A América que se fez sobre os inúmeros índios mortos não tem lugar para as elites carcomidas alienadas que se afirmam por meio de se negarem. Estamos no umbral de uma civilização que se forma mediante a dialética negativa da contra revolução burguesa e descobrimos, para nossa mais genuína surpresa que estamos de pé em um balcão sobre a barbárie do império anterior.

sábado, 30 de janeiro de 2010

CRONICAS AMERICANAS 3

Reversões do autoritarismo

A década de 1990 para a América Latina foi um momento de fortalecimento de tendências democráticas em um período de extroversão do poderio norte-americano, agora com os poderosos contrapontos da China e da Rússia. O fim do ciclo de ditaduras de 1964 a 1985 representou mais que o fim de autoritarismos violentos, já que mostrou novas escalas de diálogo e novos espaços de identidade. Mas esse período revelou-se um teste difícil de superar, porque tornou necessário qualificar as democracias e por à prova a substância histórica do Estado nacional. Não é suficiente reconhecer o poder ascendente das grandes empresas, mas é preciso confrontá-las com o tecido de acordos, lealdades, deslealdades e individualismos que estão no miolo desses grandes interesses. O fim das ditaduras deixou à vista Estados nacionais carentes de legitimação e necessitados de instrumentos eficientes de gestão. Mas essa conclusão de ciclo também significou o esgotamento de referências de sistemas de poder arcaizados, que conjugavam uma ancoragem totêmica em preceitos do mundo rural personificado com uma complexa teia de mecanismos de subordinação trabalhados sutilmente pelas principais potências ocidentais. Desde a década de 1950 o imperialismo descobriu a cultura como recurso de dominação, mas não sabia o que fazer com ela. Criou uma antropologia subalterna, mas revelou-se incapaz de tratar as nações americanas como sociedades e relegou-as à condição de cultura e seus idiomas à categoria de dialetos. Com essa manobra estabeleceu uma distância insalvável entre as sociedades proto-européias e as indígenas.

Com a critica da cultura colocou-se um dilema de maioridade nacional que logicamente não seria dado pelas grandes empresas, senão que fluiria da relação entre a sociedade econômica e a sociedade política. Toda a luta que se livrou entre as estruturas tradicionais de poder e as representações dos setores não capitalistas foi – e tem sido – uma manifestação de novas sociedades urbanas que exprimem novas ideologias e novas competências.

Desde então, decepções que sobrevieram no plano político, como no Brasil em 1985 e na Argentina em 1984, quando voltaram ao poder políticos representantes de situações anteriores às ditaduras, na verdade instrumentalizaram um novo momento de articulação dos grandes capitais em seu duplo movimento de controle do mercado interno e de participação no mercado internacional. É revelador que no Brasil a saída da ditadura tenha sido paga com anistia a torturadores. É um pacto de poder que indica limites de ação e regras de conduta.

A América Latina entrou no novo século com um modo de concentração de capital que põe de um lado um pequeno número de grandes capitais privados, um número não muito maior de fundos públicos controlados pelo sistema político e um pequeno número de grandes empresas privadas. Este novo padrão de poder econômico tem duas graves conseqüências que são as de aumentar o poder dos governos nacionais para decidir sobre a taxa de investimento e o aumento da vulnerabilidade dos países frente a decisões econômicas que escapam ao controle dos governos nacionais.

Esta equação de poder encaminha um novo perfil político dos governos nacionais latino-americanos que se sustentam em associações de interesse com os grandes capitais e desenvolvem estratégias sociais compensatórias. Observe-se que, mesmo em situações em que são claramente redistributivas, como no caso do programa bolsa família, essas estratégias não criam novos empregos diretos e seus efeitos no mercado de trabalho são todos indiretos. Salta à vista que o essencial desse contexto é um realinhamento do sistema de poder com barreiras mais claras entre as esferas de influência dos grandes e dos pequenos interesses e dos que operam em circuitos paralelos de poder.

Estão em jogo o pacto e a forma do autoritarismo, mas não o modo autoritário de controle social. Este se exerce com mais força sobre os trabalhadores e sobre todos os que precisam trabalhar. A tendência incoercível ao desemprego tem o efeito contraditório de devolver ao Estado o papel de fiador da renda da classe média, agora mediante os mecanismos de concurso para o serviço público. O Estado retoma funções de empregador e introduz novas condições de diferenciação de renda e de garantia de emprego. Às empresas resta o papel de defensoras dos interesses do capital, protegidas pelo talento dos setores de publicidade e de marketing. Caberá examinar esses novos desvãos da modernização, assim será preciso rever o significado da qualificação educativa formal. Uma rápida revisão do que vêm sendo os movimentos locais de reivindicação econômica, em diversas partes do Brasil, revela uma enorme distância entre aquela modernização conduzida pelos aparelhos do grande capital e as iniciativas de comunidades e governos locais. Uma nova visão teórica sintética desse processo espera, desde a Revolução burguesa de Florestan Fernandes.

A questão central parece estar no laço entre movimentos externamente conduzidos e movimento internamente apresentados, que qualifica relações de classe e dá novas luzes aos aspectos étnicos e éticos. A critica histórica do autoritarismo se faz como uma manifestação histórica de consciência social.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

CRONICAS AMERICANAS 2

Os fundamentos irracionais da autoridade

O autoritarismo é um modo de ser da atividade política que se realiza nos âmbitos em que ela acontece, desde o ambiente familiar ao comunitário e ao da política organizada nos planos local, regional e nacional. O autoritarismo é uma manifestação irracional de autoridade, que tem sido atribuído ao componente tradicional dos sistemas de poder, por isso mesmo, separado das práticas de modernidade. No entanto, diante do recrudescimento das estratégias de poder conduzidas a partir de uma lógica de interesses identificada com a perspectiva de empresas
[1], torna-se necessário rever os fundamentos históricos do autoritarismo. Não será um atributo do que é tradicional senão uma estratégia de poder que usa a referência a tradição, do mesmo modo como usaria qualquer outro recurso a controle social. O autoritarismo usa tradições apenas no que elas reforçam a relação entre autoridade e obediência, mas não cita tradições de trabalho cooperativo nem tradições de insurreição. Em síntese, o modo de autoritarismo precisa ser colocado em situações e em processos específicos, tal como ele é chamado a sustentar processos de poder.

Essa relação entre o autoritarismo e a base familiar da sociedade exige uma reflexão mais cuidadosa acerca das transformações da esfera familiar na América. Os Estados Unidos tiveram modificações precoces determinadas pelo esforço bélico na Primeira e na Segunda Guerra Mundial. Os conflitos políticos e as migrações foram os principais detonantes de transformações na família dos grupos médios e superiores de renda, enquanto a luta pela sobrevivência modificava decisivamente a família nos grupos de baixa renda. Relações baseadas em cooperação e em concorrência foram instigadas pelas condições diferenciadas de participação no mercado de trabalho. Novas relações de poder se formaram desde as relações familiares, que se projetaram nas empresas, nos partidos políticos e na máquina governamental.


A importância que cabe atribuir ao autoritarismo hoje se deve a dois dados específicos da vida política na América Latina que são a atualização do bloco histórico de poder e o recrudescimento de práticas de controle maciço da população que podem ser entendidos como modos de autoritarismo indireto. Na América em geral há um problema com autoridade e com autoritarismo que acabou sendo trabalhado de modo explicito no mundo latino-americano e ocultado no mundo norte-americano. As estratégias do poder norte-americano partem de uma situação aparentemente inquestionável de supremacia para definir defesa, segurança etc. Passam por alto os limites externos desse sistema de poder e olham para as linhas internas de tensão apenas como variáveis desse jogo de poder. Há um autoritarismo direto, que se estende das ditaduras aos aparelhos de poder sutis e outro autoritarismo indireto, que usa o anterior e se realiza mediante o controle da formação de capital. À simplificação de dizer que a América Latina tem estado travada por problemas com autoritarismo cabe indicar a necessidade de um olhar introspectivo e cuidadoso sobre o tema da autoridade, com suas raízes, seus desvios, e, principalmente, a carga de reivindicações que este tema engloba.

As nações americanas surgiram de confrontos com versões de autoritarismo europeu, em confrontos que tiveram diferentes efeitos na grande propriedade rural. Nos Estados Unidos a disputa por sistemas de grande propriedade foi transferida à expansão de fronteiras enquanto na América Latina a grande propriedade foi assumida como fundamento das novas estruturas nacionais. A construção de sistemas autoritários abasteceu-se de tradições herdadas do feudalismo e de sistemas tribais americanos, como caciquismo e caudilhismo, que representavam o mando de base familiar, mas não de propriedade de terras. O prestigio pessoal do cacique, que jamais foi hereditário, foi reforçado por mecanismos locais de poder, favorecidos pela fragilidade dos Estados nacionais. O principio de autoridade identificado com a propriedade da terra foi incorporado ao sistema produtivo com o peso reconhecido aos proprietários na constituição do poder político formalizado.

A primeira observação que aparece como essencial nesta reflexão é denunciar a manobra sutil que consistiu nessa apropriação de valores indígenas de diversas nações e contextos, justamente, pelos sistemas que se formaram mediante a dominação dos índios. Guerra e extermínio sistemático de indígenas marcaram a formação dos EUA, da Argentina, do Brasil. Junto com a desqualificação dos indígenas vem a dos mestiços e a criação de fantasmagorias de uma América européia. O autoritarismo deriva do controle de terra e água, que estão associados ao controle de pessoas e se atualiza, incorporando referências do próprio modo de modernização. Uma segunda observação refere-se a como o controle das pessoas, isto é, da força de trabalho atual e da potencial, se torna o eixo do sistema, regulando a capacidade de controlar o uso da terra e as oportunidades de renda nas cidades. A chave desse processo é o controle da qualificação dos trabalhadores que se torna uma mercadoria e que está direcionada para atender uma demanda atual.

A formação e a consolidação de sistemas de autoritarismo fizeram-se por meio do controle do Estado e em sucessivos movimentos que transcenderam o poder militar local – milícias e bandos armados – ao de forças armadas nacionais. A autoridade não dependeu de eficiência econômica senão de controle de patrimônio. A incorporação desses sistemas nacionais ao mercado se fez mediante a articulação da produção rural por interesses internacionais, quase sempre britânicos. Coincide com a Segunda Revolução Industrial e aparece na Argentina, na incorporação dos Pampas ao circuito de exportação e no México à renovação da grande propriedade produtora de mercadorias pelo Porfiriato. No Chile com a exportação de guano e com a transformação do Chile em economia mineiro exportadora, tal como a seguir aconteceu com o Peru, com a Bolívia e com o México.

A expansão do capital que aconteceu entre 1870 e 1914 substituiu os mecanismos locais por mecanismos nacionais de poder, subordinando as formas mais antigas, preservando modos de autoridade familiar com a ajuda de aparelhos ideológicos que opera à margem do sistema mas que são essenciais a ele, tais como as igrejas e o sistema educativo. A consolidação de Estados nação foi um processo violento conduzido por núcleos regionais de poder, tal como aconteceu no Chile, na Argentina e no Brasil. Comparado com a força do federalismo na Argentina o centralismo chileno seria um exemplo de concentração de poder que se identificaria com um nacionalismo conservador.

O fim da Segunda Guerra Mundial trouxe o desmoronamento desse sistema patrimonial pré-industrial e sua substituição por posições periféricas de atrelamento ao mundo industrial. Nesse novo contexto definiram-se papéis a serem desempenhados pelos líderes da industrialização, especialmente pelos EUA, papéis para os secundários do centro, como os Países Baixos, o nórdicos e papéis diferentes para países periféricos com variada capacidade de crescer. Em resumo, a chamada relação entre centro e periferia, tal como trabalhada por Prebisch, encobre posições e funções incomparáveis de países e de grupos. A relação concreta entre o campo do centro da acumulação mundial e o da periferia passa pelas vicissitudes da organização social da produção, em nações com mais recursos de solo e água como a Argentina ou em nações com limitações físicas como o Peru.

O desenvolvimento de sistemas exportadores externamente controlados foi a base de um colonialismo hoje difícil de entender, mas que foi a grande explicação da prosperidade desde a Inglaterra até a Bélgica e que só pôde se manter com o concurso desse autoritarismo irracional que manteve numerosas populações a serviço dessa lógica de extração de valor. A questão, portanto, se remete aos mecanismos do poder externamente controlado que desenvolve procedimentos internos de legitimidade. O tema da legitimidade, como advertiu Habermas torna-se essencial para a sociedade do capital em seu conjunto
[2]. A ascensão norte-americana se sustentou com a criação de novos aparelhos de poder, principalmente mediante indução e controle de consumo, de itens como coca cola e cinema, mas não removeu os aparelhos do sistema anterior, em que empresas européias encontraram como armar estratégias de participação nos mercados americanos. A própria sociedade norte-americana torna-se uma referência crítica

Sob essa pressão externa constante o autoritarismo torna-se uma estratégia defensiva, de proteção dos blocos de poder que procuram sobreviver com seus privilégios. O bloco de poder se reorganiza para defender a taxa de lucro que conseguiu mediante a coerção do mercado de trabalho, tal como foi feito no Chile posterior a Allende. O regime político instalado pela ditadura no Chile em 1973 foi um experimento mundial de autoritarismo e de desqualificação da representação dos interesses dos trabalhadores, cujo antecedente foi o franquismo, com a diferença que operava no contrapé do declínio da Guerra Fria, respondendo a um projeto imperialista do fim do século XIX, de inspiração imperial Germânia. Descrevem-se, assim, elementos de uma irracionalidade mais profunda e anterior ao próprio nazismo, que encontraria seu correspondente no autoritarismo argentino igualmente pró-nazi.

Surge desses socavões de irracionalidade pré-capitalista uma nova agressividade que mobiliza valores ditos tradicionais que são a representação dos interesses do sistema de poder emanado da grande propriedade. O novo sistema de poder se mobiliza para sustentar uma expansão de capitalismo periférico com fragilidades estruturais que são, precisamente, a falta de mercado próprio e a falta de energéticos, como é o caso do Chile. O poder se transveste de moderno, de empresarial. Recorre aos fundamentos irracionais do autoritarismo ibérico quando combina ingredientes religiosos e racismo, agora encontrando aliados inesperados nas facções mais reacionárias do protestantismo.

Descobre-se a principal contradição entre a reprodução do sistema irracional do autoritarismo e os mecanismos racionais de operacionalização do capital. No essencial é o uso racional da irracionalidade, que é a marca do autoritarismo industrial. Há um uso tecnificado do sistema político para corromper e eficiência econômica dos empreendimentos. Racionalidade na gestão do capital e do emprego e irracionalidade no nepotismo na esfera do capital privado. Finalmente, irracionalidade de desempregar força de trabalho quando o capital precisa de mais demanda interna para se reproduzir. Não é por acaso que o Brasil pôde ampliar a demanda interna mediante medidas populares – por discutíveis que sejam – enquanto outros países não tiveram essa margem de manobra. O desastre do capital na esfera mundial foi detido pela emergência de novos grandes mercados na Ásia, mas a tendência geral continua apontando a um bloqueio do mercado associado à queda do emprego.

Sob a pressão da crise mundial destapada em 2008, a polêmica em torno do autoritarismo se instala de novo, agora com uma combinação de referências internacionais e nacionais. Surgem “teóricos”periféricos do poder central
[3], revelando uma diluição das elites com os compromissos nacionais e uma nova atitude das grandes potências no uso de mercenários de todos os tipos, desde soldados a intelectuais.


[1] No discurso crítico sobre a América será inevitável, adiante, questionar a racionalidade das empresas como representantes dos interesses privados.
[2] Jurgen Habermas, Legitimidad del capitalism tardio, Buenos Aires, Amorrortu, 1972.
[3] Personagens tais como Parag Khanna ( O segundo mundo, 2008) ou certos “especialistas” brasileiros que trabalham para os planos de defesa norte-americanos exemplificam essa desnacionalização.

sábado, 9 de janeiro de 2010

CRÔNICAS AMERICANAS I

Exórdio

O olho do tempo pertence a Horus, o deus falcão que antecedeu Osiris. Na América mais profunda pertenceu ao deus Jaguar, que está a cavaleiro da Calçada dos Mortos em Teotihuacan e que no sul recebeu os nomes crípticos de Chac Moll e de Kukulkan. Para a América o tempo tem várias dobras que não podem ser reduzidas aos tempos de seus diversos invasores, desde os polinésios aos fenícios, aos vikings aos irlandeses e aos ibéricos. O tempo histórico da América se divide entre as regiões das civilizações antigas e as regiões de civilização recente, como a Argentina, o Brasil, os Estados Unidos e o Canadá. Mas, até por antecedentes geológicos são diferentes grandes regiões da América. Uma reconstituição histórica da América tem que passar pelo modo como se vive hoje essa complexidade.

O tempo governa os espaços, como nos dizem a astronomia e a história. Para a sociedade, o tempo comparece na forma de memória. O controle da memória é uma forma de poder que se exerce selecionando de que se lembrar e como disputa pela modernidade na América o controle da memória é um modo de confrontar com a dominação e de construir uma identificação mais que uma identidade transitória. Para o Brasil essa disputa pelo tempo memória é fundamental para perceber o futuro.


O cenário em 1970

A história com que tratamos não começou em 1970, mas aquele foi um ano chave que situou opções futuras e construiu uma releitura dos vinte anos anteriores. O fim da década anterior ficara marcado por um conjunto de eventos em 1968, em Praga, Paris, Washington, México, que indicaram, de diferentes modos, grandes rupturas nos sistemas estabelecidos. Foi, também o tempo do acirramento e fim da guerra do Vietnam e da guerra de 67 no Oriente Médio. O fim do qüinqüênio ficou denominado como de uma crise de combustíveis, mas demarcou uma quebra do padrão de acumulação mundial de capital e encabeçou uma revolução dos transportes e uma reestruturação da produção industrial. O mundo ganhava novo sentido de internacionalidade e a América Latina passava a uma integração forçada com essa nova mundialidade. Surgia o poder das multinacionais.

Adiante voltaremos ao acontecido por estas plagas nos decênios de 1950 a 1970. Em 1970 Prebisch deixou a UNCTAD e voltou para Santiago do Chile, já não para a CEPAL senão para retomar o controle de seu projeto predileto, o Instituto Latino-americano de Planejamento Econômico e Social – o ILPES – concebido para pensar ativamente a transformação do continente. O ILPES era o herdeiro direto da CEPAL, mas não era um órgão regular de consulta das Nações Unidas e tinha as mãos livres para fazer consultoria, realizar cursos e desenvolver pesquisas segundo suas próprias prioridades. Podia levantar questionamentos que não poderiam ser feitos por um órgão de consulta. Um ambiente onde era possível pensar de modo crítico. Criava-se um problema interno de representatividade em relação com o debate central sobre as políticas econômicas dos países latino-americanos, já que os documentos de consulta continuavam sendo elaborados pelo Departamento Econômico da CEPAL. O ILPES podia escolher suas prioridades. Surgia uma proposta, praticamente inevitável, de retomar os questionamentos de 1949, que tinham dado lugar ao aparecimento da teoria da relação centro-periferia. Esse desafio foi tomado no segundo semestre de 1970, quando Prebisch reuniu uma equipe de vinte pesquisadores para empreender um estudo que deveria substituir o famoso Estudo de 49, mas que jamais pôde ser concluído.

Na verdade estavam todos perplexos com acontecimentos que desmontavam teorias estabelecidas e havia poucos com a coragem de dizer que era preciso voltar às bases. Daí a enorme importância de homens como Myrdal que se colocavam “contra a corrente”, uma espécie de Lúkacs das ciências sociais que se declarava não marxista e exibia um sólido conhecimento de Marx. O debate teórico da década anterior estava esgotado. A teoria econômica de Solow, Hahn etc não passava de um exercício mecânico sobre pressupostos monetaristas sem imaginação. A sociologia se renovava com Giddens, Touraine, Bourdieu, Baudrillard. Mas a principal força da época vinha da filosofia com novas leituras de Lúkacs e de Gramsci, com Habermas. Já se via que no campo social a criatividade ficava por conta da História e da Filosofia.

A perplexidade não veio por acaso. Em 1970 ecoavam os tumultos urbanos de 1968 e a Primavera de Praga. Terminava uma década de juros baixos e se configurava uma crise de endividamento externo, anunciada por Avramovic. A economia internacional absorvia uma notável revolução dos transportes e das comunicações, ao tempo em que registrava a ascensão das empresas multinacionais (VAITSOS, 1978). No próprio ambiente da CEPAL e do ILPES já se perfilava outro discurso, de cunho sociológico, basicamente de estofo weberiano, sob os títulos gerais de marginalidade e dependência. A ruptura com o discurso economista pós-ricardiano de Prebisch, através do qual se descobriam as diferenças entre uma corrente marxista em contraste com a corrente weberiana que prevalecera sob a influência de Medina Echevarria seguido por outros sociólogos como Aldo Solari e Fernando Henrique Cardoso.

As leituras de teoria ou as explicações de corte teórico formadas na década de 1960 registraram o abalo de terem que registrar e reconhecer experiências nacionais que não se enquadravam nas receitas keynesianas. Literalmente, a história entrava pela janela, quando se enfrentavam os problemas de planejamento na Bolívia do governo Paz Estensoro – que queria fazer reforma agrária – e adiante no de Velasco no Peru, e já no Chile de Frei em que Ahumada inseria a “chilenização” do cobre. A América Latina já registrara a ferida representada pelo golpe que derrubou Arbenz na Guatemala e assistira as pressões sobre os governos socialistas da Jamaica e da Guiana do Chedi Jagan. O discurso do planejamento não podia mais ser “acadêmico” isto é, ficar nas mãos de tecnocratas reverentes aos impérios. A Revolução Cubana colocava um dilema que foi respondido por diversos técnicos do ambiente da CEPAL que foram para lá. Alguns chilenos que foram para Cuba foram posteriormente assassinados pelos sicários de Pinochet em 73, como aconteceu a Ricardo Garcia.

Os limites internos da industrialização eram os mesmos nos diversos países latino-americanos onde o bloqueio da classe media também significava a estagnação do mercado interno. É curioso como os economistas tinham ou têm dificuldade em entender que o mercado é o ambiente de negócios, como nos ensinou Marshall. Os estudos de economia industrial datados da década anterior revelavam-se ingênuos por não perceberem as mudanças na estrutura das empresas e ignorarem a aliança entre os grandes capitais e os governos nacionais. A análise econômica industrial continuou tecnicista, isolando-se da agricultura, sentindo-se mais avançada que o comércio, ignorando o preceito de Marshall que o capitalismo se faz mediante negócios que envolvem todos os setores. Perdeu-se muito tempo trabalhando com uma suposta separação entre agricultura e indústria, assim como se perdeu tempo transformando a caixa preta de serviços em caixa de primeiros socorros.

As experiências que se acumularam entre 59 e 69 decretaram o esgotamento da teoria econômica pós-marginalista, dita neoclássica, saída da combinação das análises de Paul Samuelson e John Hicks. É curioso que ambos pretenderam ser herdeiros de Keynes, o primeiro pretendendo inovar em teoria dinâmica e o segundo dispondo-se a “completar” idéias de Keynes com seu falido A crise da economia keynesiana
[1]. Observe-se que o campo da economia neoclássica, essencialmente acrítico, transformou-se em uma sociedade de elogios mútuos, com pequenas divergências entre marginalistas neoclássicos e marginalistas keynesianos, onde autores anteriores são citados apenas para lembrar algum dispositivo de análise. É elegante citar Marx, mas está claro que a maioria não leu nada dele e não entenderam mas não gostaram.

Os próprios adeptos da ortodoxia não sabiam muito bem para onde ir, porque não dispunham de ferramentas para dar conta das mudanças. Mas a história não é a da teoria, senão a teoria reflete a história. No mundo saxão, que se apresentava como único capaz de produzir e conduzir a teoria social, especialmente a econômica, formava-se um novo escolasticismo que chegaria à insanidade de supor que as ciências sociais começavam com os Estados Unidos, como insinuam Huntington, Fukuyama e outros. Não por acaso, o atraso com que a academia saxônica leu os grandes autores alemães, suecos e franceses, por não dizer outros, sempre preferindo os mais conservadores, os mais recalcitrantes a reconhecer a pluralidade civilizatória essencial. Marshall
[2] e Schumpeter foram tardiamente redescobertos através de partes não polêmicas de suas obras. Kalecki foi descoberto por Joan Robinson e apresentado como um quase Keynes e não como o socialista que foi. Anos mais tarde Gramsci também foi pasteurizado e apresentado como um crítico de Marx[3].

Aos que tivemos a oportunidade de transitar entre os mundos culturais do poderio econômico e militar instalado e da periferia sujeita a oscilações de incerteza, foi dado ver a bifurcação entre a visão de mundo da dominação e a que se afastava dela. O fim da década de 60 revelou uma pletora de pensamento social e filosófico que mostrou a importância do retorno aos alicerces históricos da teoria. Autores como Henri Lefèbre, Jean Lojkine, Manuel Castells, David Harvey passavam a ser leitura obrigatória junto com Georg Lúkacs, Sartre, Merleau-Ponty, Camus, Foucault, todos do Primeiro Mundo, mas onde Samir Amin, Panikar faziam parte do cenário onde já estavam Prebisch e Celso Furtado
[4]. Tardaria muito para que se percebessem os fios condutores entre as obras desses autores, para que se situasse a linhagem Sartre – Foucault – Badiou ou que se percebesse o significado do desvio da teoria critica entre Adorno e Habermas. Mais ainda, para que se desmistificasse corpos doutrinários sutilmente transferidos como os do pragmatismo.

A ruptura do padrão de acumulação de capital correspondia a uma ruptura nas ciências sociais e a um descobrimento cultural que ficou por conta da literatura, onde a América Latina sobressaiu mais que o Velho Continente, com Roa Bastos, Cortazar, Asturias, Rulfo, Vargas Llosa e Garcia Marquez. O descobrimento da literatura como linguagem historicamente situada e como voz do mundo social revelou uma independência que se tornaria essencial para a América (JAMESON, 1995). O descobrimento da pluralidade historicamente formada e da identidade societária por trás da aparente pluralidade cultural seria inacessível a antropólogos desconhecedores da história do continente, embasbacados com Karl Wittfogel e Eric Wolf. O país com menos história, a Argentina, foi o melhor historiador e trouxe à baila a obra de Romero.

No plano político o cenário de 1970 na América Latina já estava contaminado pela nova vaga de golpes que começou em 64 no Brasil, prosseguiu em 67 na Argentina com a derrubada de Ilya e alcançou seus momentos mais trágicos em 73 no Chile e em 76 na Argentina. A corrente mlitar “azul” dos generais Ongania e Lanusse começava uma linhagem de militarismo adepto à Escola do Canal de Panamá notavelmente repetitiva. No Chile, conquanto o golpe liderado por Pinochet tivesse evidentes ajudas dos norte-americanos, dos ingleses e dos israelenses, teve a peculiaridade de uma inspiração franquista, com um radicalismo que nada tinha a ver com a geopolítica norte-americana. A versão chilena pós-franquista, tinha sua própria visão imperial, com pretensões a ser a Prússia da América Latina, colateral de seus rivais argentinos simpáticos ao nazismo. Não se deve esquecer que a corrente “azul” de Ongania, Lanusse e outros ganhou a disputa com uma corrente “colorada” liderada pelo almirante Rojas, que era claramente pós-nazista. Revelava-se que o militarismo na América Latina estava impregnado de raízes ideológicas pré-industriais, que continuava racista e pensava em termos de destino manifesto, um conceito herdado da dupla Hitler- Mussolini, mas que identificava com a direita castelhana colonialista. Pode-se considerar que os golpes militares da década de 1970 estavam ideologicamente situados com categorias da estrutura de poder do início da Segunda Guerra Mundial. A associação do peronismo com os nazistas, o projeto de domínio da América do Sul passaram por cima do intervalo dos Radicais Independentes vindos de Irigoyen e a queda de Frondizi significou a volta dessas ideologias retrógradas atualizadas.

O Brasil não fazia por menos, mas teve a graça de suceder o ufanismo do ‘milagre econômico” por uma visão realista de uma política internacional essencialmente prática, apesar de se antecipar ao famigerado Consenso de Washington com a política de equilíbrio macroeconômico e de desestatização promovida por Mario Simonsen. Os desastres de política econômica da década de 80 não fizeram mais que ecoar o atrelamento da economia brasileira ao espaço imperial do norte. Afinal, o fim da ditadura deu lugar a um retrocesso político de uns trinta anos. A saída do aperto através de um conservadorismo pragmático marcaria as sucessivas políticas desde Itamar Franco, que dariam lugar a que os governantes se atribuíssem sucesso simplesmente por seguirem o caminho mais prático. Os inconvenientes de corrupção seriam apenas danos colaterais. O futuro a nós pertence.
[1] John Hicks, La crisis de la economia keynesiana, Barcelona, Labor, 1976.
[2] É sintomático que a visão de Marshall do sistema econômico como regido por deslocamentos graduais das variáveis e de equilíbrio temporário tenha sido praticamente ignorada por seus leitores anglo-saxões.
[3][3] Na reivindicação de leituras gramscianas de Gramsci vale a pena ver os textos de Nicola Badaloni e os comentários de Carlos Nelson Coutinho, principalmente em sua introdução à tradução da Concepção materialista da história.
[4] Furtado já foi redescoberto umas duas ou três vezes e passou a ser elogiado por cidadãos que não o leram e que nada têm em comum com ele. Tornou-se um macroeconomista e não mais um economista de formação histórica dotado de sentido critico.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O NORDESTE NA FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL

Um enquadramento do tema

O trabalho de Furtado em seu momento constituiu uma revolução no estudo da história econômica, especialmente no da história do Brasil, ao situar a origem da formação deste país no movimento geral do capital mercantil e mostrar como sua criação foi parte dos interesses que construíam os Estados nacionais europeus. Hoje pode ser reavaliado pela contribuição que representou e como indicativo das bases informativas e das condições ideológicas que prevaleceram na análise econômica naquele período. Precisamos vê-lo em seu valor de hoje como peça que interage na compreensão do país com sua complexidade. Para apreciar adequadamente esse trabalho no que ele tem de permanente, é preciso considerá-lo à luz da percepção histórica do processo social e das origens do processo de formação do Nordeste (Guimarães Neto, 1989), entendendo o significado das simplificações em que ele incorre.
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Inicialmente, trata-se de colocar a criação do Brasil no contexto do movimento geral de expansão do capital e da estruturação de um poder político que se descolava de seu fundamento feudal. Na formação do capital mercantil moderno as alianças que se costuravam entre comerciantes e armadores envolviam a sustentação econômica dos monarcas e a abertura de rotas comerciais no ocidente. Surgiram projetos de expansão oceânica, primeiro sobre a África, em que os portugueses tomaram a dianteira dos espanhóis, mas em que, para ambos, tratava-se de uma continuação da guerra contra os muçulmanos. O modo como esse projeto de poder atingia aos africanos era uma decorrência de uma postura belicosa que ficou ilustrada pelo ataque a Ceuta e no comportamento de Vasco da Gama. A questão contraditória que se coloca a seguir está na ambigüidade das relações da Coroa portuguesa com os judeus, já hostilizados na Espanha desde o século XIV[1]. Falta dizer – Furtado omite – que esse movimento pelo oeste foi alentado pelos efeitos da expansão castelhana na Espanha, que configurava um perigo constante para a soberania de Portugal. O mesmo determinante externo que levou Portugal a essa aliança exótica com a Inglaterra estimulou a construção de poder econômico, político e militar fora da península ibérica.
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O propósito de construir espaços de poder capazes de compensar as pretensões de unificar a península ibérica tornar-se-ia a principal referencia de política externa de Portugal. Desde o século XIV, com D. Diniz, a visão internacional de Portugal era bastante mais aberta que a da Espanha, onde a visão feudal castelhana e a mercantil catalã ainda não tenham definido um modelo interno de poder, e não tinham encontrado um substituto econômico para o poder muçulmano. A clareza do projeto político, econômico e militar português permitiu que se definissem funções para as regiões de que ele se constituía. A expansão foi um projeto de Estado. A diferença entre as colônias no Brasil e na África foi que estas se definiam como regiões produtivas enquanto aquelas foram apenas áreas de depredação. No período de expansão do Império o Nordeste, especialmente a Bahia, desempenhou uma função primordial na articulação do comércio e não só como região produtora, conquanto essa fosse uma função de suma importância[2]. No século XVII o Nordeste foi tão valioso que justificou que Portugal por ele pagasse aos holandeses (Mello, 2003), além de retirar da memória o papel da luta pelo controle da escravização na configuração do poder na colônia (Alencastro, 1999).
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No final do século XV Portugal já tinha reunidos todos os elementos necessários para o fundamento econômico de seu império e parece ser uma simplificação indevida reduzir esse projeto à produção de açúcar, por mais que essa mercadoria fosse o eixo de um sistema de negócios em expansão. O projeto imperial compreendia o domínio de uma variedade de produtos e de técnicas de produção, bem como o uso de novas formas de administração. O Nordeste foi uma grande região produtora de mercadorias e de serviços essenciais ao funcionamento do Império, tornando-se necessário entender que se tratou da região em seu conjunto, com a exportação do extrativismo e com o conjunto dos produtos e serviços e não só a produção de açúcar, que desempenhou esse papel. O extrativismo gerou importantes exportações de madeiras de lei e de fibras, além do óleo de baleia e da contribuição ao funcionamento da navegação oceânica. A identificação desse conjunto de formas econômicas com tradições comuns criadas através de movimentos próprios de expansão territorial deu ao Nordeste uma personalidade regional anterior à de outras partes do país. Esse fundamento histórico constitui uma referência que emerge da literatura regional, mas que não foi cabalmente explorado pela história econômica.
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A pluralidade inicial

A obra de Celso Furtado contribuiu poderosamente para renovar uma polêmica sobre a identidade do Nordeste, que foi alimentada por diferenças na região; e por visões externas, geralmente simplificadoras e tendentes a desvalorizar o papel da região na formação do país, especialmente no século XX. Que ou quem seria o Nordeste? Porque considerá-lo uma região carente se foi a região mais rica do país durante mais de duzentos anos? Porque não investigar as causas sociais e políticas do atraso? Desde que o governo brasileiro descobriu a seca encontrou um argumento poderoso para desentender-se dos problemas sociais e políticos herdados do colonialismo e da escravidão. A representação do sistema de poder formado pela produção canavieira ou a estrutura de poder baseada na grande propriedade rural? Quanto é possível identificar a grande propriedade com a produção canavieira? A grande propriedade expandiu-se com a produção da pecuária e sobreviveu, como forma de poder, à decadência da produção açucareira. Uma hipótese colateral a ser examinada é que o Nordeste perdeu funções por não ter sido capaz de se atualizar como província mineira no momento em que a mineração emergia em Minas Gerais e sustentava o proveitoso contrabando da região do Rio da Prata.
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A política de D. João VI operou no sentido de fragilizar a posição do Nordeste na estrutura do poder no país, consagrando uma tendência negativa da economia da região, contribuindo para que as elites nordestinas assumissem posições de contestação ao sistema de poder que se implantava com o autoritarismo dos Bragança. O papel das elites criadas no ambiente da economia mercantil no Nordeste veio a ser decisivo na constituição de grupos de poder, do mesmo modo como a renovação de elites subsidiadas foi fundamental na arquitetura do poder no período de autoritarismo de 64 a 84 (Chilcote, 1992). Frente ao argumento de circulação das elites, cabe considerar que no Nordeste tem havido pouca mobilidade, mesmo em situações em que as velhas elites perderam poder[3].
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A Formação Econômica do Brasil marcou um estilo de análise que foi precursor de algumas das teses mais importantes da historiografia latino-americana, repetida nos anos subseqüentes por Aldo Ferrer numa análise da economia argentina e por Horacio de la Peña em estudo da economia mexicana. Reproduzir a análise de Furtado tornou-se uma referência nos estudos latino-americanos. Uma análise histórica focalizada em grandes movimentos que contracenou com a História Econômica do Brasil de Caio Prado Junior, ao qual deve mais que reconhece. É um trabalho demarcatório de uma nova etapa de análise histórica, a ser devidamente reconhecida. Mas, assim como preencheu espaços deixou outros em branco. Passou por alto diversos elementos já conhecidos sobre essa parte do Brasil, cuja ausência contribuiria adiante para que se formassem mitos simplificadores, tributários de uma ideologia regional cortada ao feitio do bloco regional de poder.
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Outrossim, uma questão fundamental a ser enfrentada é a ligação entre o passado e o presente. Essa continuidade tem um papel fundamental diante de um quadro de recorrência de controle político da economia, de permanência de grupos incompatíveis com mobilidade social e com a superação do autoritarismo pré-industrial sustentado no controle dos recursos naturais. É inevitável ponderar como o fim do autoritarismo militar cedeu lugar ao retorno de políticos nordestinos anteriores àquele período – e que dele se aproveitaram – que se articularam com novos grupos econômicos cevados em contratos com os governos militares e robustecidos por vantagens monopolísticas no mercado interno. As obras públicas – principalmente barragens e estradas – foram os instrumentos desse enriquecimento seletivo, que foi complementado com distritos de irrigação e com crédito preferencial (Chilcote, 1992; Silva Filho, 2004). As obras públicas funcionaram como um sistema seletivo de valorização de terras, curiosamente favorecendo os grandes proprietários. O ambiente do autoritarismo favoreceu um movimento original de atualização de sistemas de poder que já se encontravam desgastados pelo declínio da indústria de bens de consumo e pela incapacidade da agricultura exportadora tradicional, organizada em torno do açúcar, do fumo e do algodão, para se adaptar às mudanças do mercado mundial. Criou-se um mito de que a economia do Nordeste foi subordinada pela expansão da economia de São Paulo, sem tomar em conta que o desgaste da economia nordestina começou com a especulação financeira causada pela política de Rui Barbosa e que foi objeto de estratégias de penetração de grandes empresas européias envolvidas com a comercialização do cacau e com a do algodão.
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No ambiente econômico de após a segunda guerra mundial tornou-se imperativo explicar os processos de atualização do bloco de poder no Nordeste, como parte essencial desse processo na escala nacional. A funcionalidade do sistema de poder do Nordeste no país em seu conjunto ficou evidenciada na participação da região no legislativo e no executivo federais, acima do que se poderia inferir da economia da região. Em seu tempo, a oposição dos governadores do Nordeste à SUDENE – até que puderam controlá-la politicamente – foi uma indicação inequívoca dessa influência. O próprio Celso Furtado foi o principal alvo desse movimento reacionário que o identificou como protagonista de um estilo de mudança que quebraria o sistema de poder prevalecente. Com outras cores, Furtado teria um papel semelhante ao de Francisco Julião e das Ligas Camponesas.
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No final do período da ditadura a SUDENE tentou retomar sua atividade precípua de planejamento, tentando recuperar a lógica interna do desenvolvimento. Mas, desde o governo Collor, o governo federal entrou completamente no jogo da oligarquia nordestina, perdoando dívidas de usineiros e garantindo espaços na estrutura federal de poder para alguns dos mais claros representantes da aliança da velha estrutura de poder com a atualização do bloco de poder nordestino, facilitando a reconstrução de grupos poderosos na produção canavieira oligopolizada. Nas condições que se desenvolveram desde o golpe de Estado de 1964, tornou-se impossível construir uma compreensão historicamente consistente do Nordeste sem referências diretas aos grupos políticos regionais que se consolidaram desde então.
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O sistema político nordestino tornou-se o grande aval dos componentes mais retrógrados da política econômica nacional e viabilizador da defesa intransigente de interesses pessoais. As instituições criadas para impulsionar o desenvolvimento da região, como o Banco do Nordeste e a SUDENE ficaram sob controle dos principais grupos de interesse da região ou foram destruídos, como foi o caso da SUDENE, sob pretexto de uma corrupção realmente realizada em outras regiões. Em seus últimos anos Celso Furtado deu declarações que evidenciaram sua completa consciência desse processo
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A Formação econômica do Brasil (Cultura, 1959) teve a capacidade de demarcar o debate sobre o Nordeste, colocando alguns argumentos decisivos relativos à relação entre um comércio internacionalmente organizado e uma agricultura localmente estabelecida, mas introduzindo algumas simplificações que dificultaram que se percebesse a complexidade social dessa parte do país. Teria que ligar a questão agrária à modernização do capital (Rangel, 1956). O esforço de armar um modelo explicativo da transformação do país deu resultados altamente positivos para explicar a mecânica da região Nordeste, mas teve o efeito contrário de desconsiderar a progressão da complexidade social e técnica da região. O primeiro pressuposto dessa análise, que é de fazer tabula rasa de tudo que havia por aqui antes da invasão ibérica é mortal, justamente porque esse antecedente foi essencial por contraste na determinação do modelo colonial e veio a formar o contraponto do capital no campo. O Nordeste, tal como visto pela Formação é uma presença poderosa que perfilha um nativismo exclusivista, capaz de se colocar como antípoda do Brasil criado por bandeirantes e imigrantes, capaz de ser portador do estandarte ideológico de Gilberto Freyre (2001), que oscila entre uma origem flamenga e uma relação alternativa com o mundo lusitano. Nessa perspectiva, o projeto brasileiro de Portugal gira em torno do açúcar e se reduz às determinações da produção açucareira. Justamente, nesse ponto se precisa de um campo de visão mais amplo, de uma visão em maior profundidade histórica, capaz de situar o Nordeste no processo da formação do império português.
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Não se pode pensar a formação do Brasil por separado da formação do Império Português e sem reconhecer que o projeto português de poder foi internacional desde seu início e representou um avanço notável quando comparado com o fundamento ideológico dos projetos de poder da Espanha, da França e da Inglaterra. O projeto de poder de Portugal se definiu no século XIV e se consolidou no século XV, combinando um conjunto de mercadorias realizado mediante um sistema de dominação que se organizou com dominação direta e indireta de trabalho, em que a variedade dos dominados era um dado da forma imperial de poder que deveria ser aceito. O Nordeste foi o principal campo de experimentação desse sistema complexo e a formação do sistema produtivo compreende o arranjo de poder que liga a produção canavieira a um determinado sistema escravista, que se completa com as mercadorias que são trocadas por escravos e com as soluções dos problemas de manutenção da população dos excluídos. Precisa-se, portanto, de uma compreensão do Nordeste capaz de dar conta dessa complexidade desse ambiente construído sobre contradições e conflitos. O Nordeste surge como uma região definida por um processo de poder baseado no controle da terra e na capacidade de decidir quem mora na colônia e quem participa dos processos de produção.
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A colonização cria uma sociedade organizada segundo diferenças sociais radicais do mundo do escravismo, que limitam as possibilidades operacionais do sistema produtivo. O sistema de poder estabelece referências que se desdobram, simultaneamente, no sistema produtivo e no sistema institucional. Nesse sistema de poder o controle do poder judiciário foi mais importante que o controle direto de tropas[4]. O modelo regional se define no plano econômico e no político, combinando a produção açucareira com o controle patrimonial. A prevalência do sistema de poder torna-se clara desde a resistência a corsários e invasores no século XVII até a capacidade de conduzir a substituição da produção manual pela industrializada. Esta complexidade já estaria registrada nos relatórios e discursos do governador Calmon de Góis na década de 1920 e antes ainda, nas Cartas de 1807 [5].
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O papel da organização internacional do comércio na economia do açúcar já tinha sido descrita por Cairú no inicio do século XIX. A Formação ignorou uma linhagem de análise que vem desde o registro da decadência do sistema colonial aos impasses do velho setor exportador no período do Império, quando a comercialização de açúcar e derivados estava controlada por capitais ingleses que tinham seus próprios interesses organizados nas Antilhas. A perda de posição da economia exportadora sob controle da oligarquia nordestina levou a uma nova configuração da articulação da esfera política com a esfera econômica que permitiu converter o controle local da terra em capital político nacional.
É esse controle da terra – realmente controle de terra e água – que faz a ligação entre formas arcaicas e formas modernas de produção e que representa a continuidade do sistema de poder subjacente no sistema produtivo. Furtado ainda nos fala de abundância de terras no Nordeste, que nesta região é um conceito inseparável da perspectiva de dominação. As terras pareceram ser abundantes porque seus moradores anteriores não contavam. A perspectiva da posse da terra é dada pela economia internacional, que ele atribui à produção canavieira.
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Ao longo do tempo a formação do sistema produtivo representou uma apropriação de espaço que substituiu o território do semi-nomadismo indígena por diversas formas sedentárias, organizadas como os territórios da produção açucareira, da fumageira, da algodoeira, articulados pela capacidade de apropriação de espaço do comércio internacional, do macrorregional e do local. O Nordeste surge como região econômica e política, formadora de uma regionalidade americana do capital mercantil, capaz de gerar identidades culturais poderosas, capazes de se fazerem representar no movimento geral da formação econômica social e política do país.
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Seguindo estes elementos numa linha de raciocínio que não choca com a proposta de Celso Furtado, pode-se pensar que o Nordeste da primeira produção açucareira, de 1500 a 1750, foi a região líder de um sistema exportador de porte nacional, em cujo âmbito perdeu espaço para as regiões produtoras das Caraíbas e do norte do Rio de Janeiro. O declínio da produção açucareira no século XVIII refletiu um desinteresse em renovação tecnológica característico da produção escravista que caracterizou o Nordeste em suas diversas atividades. Observe-se que o relativo a concorrência interna foi completamente ignorado pela Formação, que, desse modo, reduz a importância do acontecido no decorrer do período do Império. apesar de haver acordo sobre a importância do desenvolvimento da economia do vale do Rio São Francisco. A questão da concorrência com o vale do Rio Paraíba ficou em aberto na historiografia do Nordeste.
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Os movimentos contraditórios da formação econômica do Brasil
O detalhamento do modelo de interpretação do processo brasileiro leva Furtado a se concentrar nos resultados finais da produção, em termos de formação de capital, desdenhando ou simplesmente passando por alto todo o relativo à organização social da produção. Não se deveria considerar o significado econômico das lutas políticas do século XIX? Cabe esclarecer quanto se trata de modernização e quanto de industrialização. Se reconhecermos que a industrialização e a formação de bancos comerciais surgiram da aplicação de capitais formados no tráfico de escravos e que os usineiros de açúcar representam um dos principais fatores de conservadorismo no Nordeste, essa dimensão econômica e política torna-se indispensável.
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A industrialização aparece como o principal ingrediente da constituição da economia moderna, mas sem seu componente de luta de classe e sem seu desdobramento em desenvolvimento do capital financeiro. Numa revisão dos fundamentos conceituais da Formação sente-se a falta de uma análise da estrutura de classes no Nordeste, que só apareceria parcialmente com trabalhos de seus colaboradores (Oliveira, 1967) e de alguns pesquisadores estrangeiros (Chilcote, 1991). A configuração da economia provém de relações de poder no reino de Portugal. No final do século XV Portugal tinha reunidos todos os elementos para o fundamento econômico de seu império e parece ser uma simplificação indevida reduzir esse projeto à produção de açúcar, por mais que essa mercadoria fosse o eixo de um sistema de negócios. No modelo português foi fundamental o aproveitamento sistemático do leque de mercadorias introduzidas pelos muçulmanos na península ibérica, onde foi decisivo o papel das feitorias na África. Furtado, portanto, acerta quando focaliza na internacionalidade do modelo, apesar de cair em reducionismo quando formula sua interpretação da estruturação do sistema produtivo no Brasil. Nesse contexto, a configuração do Brasil como região econômica do Império dependia de um circuito de atividades, em cujo âmbito a produção de mercadorias e a solução dos problemas de subsistência se realizavam em combinações direcionadas para a participação no comércio internacional. A produção de mandioca, que era realizada pelos índios, passou a fazer parte da base alimentar que sustentava a atividade exportadora. Outros produtos básicos, tais como milho e feijão, que foram trazidos pelos colonos, vieram a constituir uma dieta básica completada com caça e com a difusão das práticas americanas de preparação de carne seca[6].
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O desdobramento inevitável dessa abordagem consistiria em ver como o desenvolvimento da economia colonial resultaria em modificações do sistema de poder do capital mercantil. Para o Nordeste, a crise do sistema colonial apareceria na forma de uma perda de posição no sistema do Império, quando a geração de mercadorias exportáveis passava a um segundo plano. O Nordeste do açúcar começava a declinar antes que o sistema escravista se esgotasse. O modelo de análise de Furtado torna-se menos adequado para acompanhar essa transformação e ele separa a Bahia do Nordeste, refletindo um sentimento comum a baianos e pernambucanos, cuja origem vem desde disputas de poder no contexto colonial, adiante reiteradas pela transferência das terras do Além São Francisco à Bahia pelo Império depois da malograda revolução de 1817. Essa separação revelou-se contraproducente no relativo à SUDENE, onde se tornou evidente a necessidade de chegar a um projeto de modernização socialmente desejável para a região em seu conjunto, onde se reconhecessem suas diferenças.
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A Formação é uma análise do movimento geral da formação do sistema socioprodutivo, que passa por alto o papel dos conflitos sociais na construção do sistema colonial e em seu declínio. No entanto, esses conflitos de interesse foram essenciais e devem ser examinados como parte integrante do projeto de poder representado pela formação do sistema colonial. Não só pela importância histórica das revoluções do Nordeste no século XIX como pelos conflitos sociais, desde Palmares à revolta dos Malês e a Canudos. É uma omissão que teria que ser reavaliada, considerando-se que o foco da análise dos movimentos das exportações levaria, por oposição, a considerar menos importante tudo relativo a produção para uso interno da colônia. Surge daí a necessidade de substituir as análises setoriais convencionais por um tratamento totalizador da formação de capital, onde os setores são simplesmente campos interdependentes de atuação do capital e onde o essencial é distinguir as transformações na composição do capital e seus desdobramentos técnicos. Essa passagem entre a análise setorial e a análise da totalidade do capital não estava disponível ao esquema teórico manejado por Furtado.
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A industrialização e o Nordeste
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A análise de Furtado do desenvolvimento da economia brasileira está marcada por sua posição frente a indústria. A indústria surge como uma mutação do capital que se separa das manufaturas tradicionais na região [7] e que substitui produção artesanal. No relativo ao Nordeste, constitui uma simplificação surpreendente, tanto por ignorar o pioneirismo da indústria nordestina no Brasil como por não enfrentar o relativo às transformações sociais induzidas pela formação de um operariado em diversas capitais do Nordeste (Castellucci, 2004). A falta de uma análise de relações de classe nesse caso é decisiva, porque impede que se vejam os efeitos da atualização do bloco de poder no Nordeste na própria oposição que se formou à SUDENE. Furtado vem de uma compreensão keynesiana do funcionamento da economia. Nessa perspectiva, viu a indústria como um setor da produção constituído de um conjunto de fábricas, que se forma por separado da agricultura e em contraste com ela e não como um campo das relações inter-setoriais que se identifica por suas inter-relações no sistema produtivo em seu conjunto. Nessa perspectiva, a indústria seria um conjunto de fábricas e o comportamento da indústria seria o desempenho das fábricas tomado em forma agregada. A teoria do desenvolvimento de origem keynesiana não distinguia entre a análise consolidada das fábricas e a análise das empresas, pelo que não via a indústria como um reflexo do movimento geral do capital onde as opções industriais e as dos demais setores são interdependentes.
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Esse viés significa que se focaliza no ambiente técnico da indústria e não no contexto histórico e econômico da reprodução do capital. Tal como na classificação oficial das estatísticas da indústria, aceita-se como indústria uma série de fábricas que se distinguem umas das outras apenas por capital contábil, número de operários etc.. Não se vêm essas fábricas como integrantes de empresas, senão como eventos que podem ser julgados isoladamente, tal como por critérios de relação custos/benefícios. Desse modo, é possível pensar que a indústria poderia ser um campo dócil perante iniciativas públicas de promoção de investimentos, que foi a presunção que sustentou as políticas de distritos industriais. Isso exclui a lógica da industrialização da produção canavieira, que está indissoluvelmente ligada à primeira industrialização do Nordeste na segunda metade do século XIX e que hoje protagoniza uma notável modernização. Exclui, também, o fato de que a industrialização se realiza mediante a entrada de novas linhas de produção ligadas a novas soluções de organização social da produção.
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Por isso, o tratamento da industrialização é o principal ponto de conflito entre a análise histórica propriamente dita e a análise histórica da política econômica. Situado na perspectiva moderna do após guerra, A industrialização foi identificada pela teoria do desenvolvimento como o componente essencial da superação do subdesenvolvimento. Mas também foi objeto de uma simplificação em supor que seria alcançada mediante decisões de governo, independentes da lógica de reprodução do capital. Furtado adere à visão simplificadora da formação da indústria no Brasil que toma 1930 como ponto de partida e ignora os movimentos do capital que se encaminharam para a indústria de transformação desde meados do século XIX. Aparentemente Furtado ignorou a complexidade da primeira etapa de industrialização, que fez, inclusive, com que o planejamento estadual da década de 1950 e o Banco do Nordeste se ocupassem tanto em recuperação de uma indústria de bens de consumo duráveis em operação há décadas[8] . É a diferença entre as tendências do capital à indústria e as opções dos governos de tomar iniciativas para industrializar a economia. No entanto, se colocamos os problemas de industrialização no contexto da economia internacional, torna-se evidente que se trata de quadros de opções dentro das quais se movem os capitais integrados nas economias periféricas.
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Pensar em termos de grande capital e de controle financeiro da produção leva a uma outra leitura do processo do Nordeste, onde a reprodução do poder político é parte essencial da constituição do poder econômico. Esse é o modo pelo qual podem ser explicados os movimentos de atualização do bloco de poder e de construção de novos pactos de interesse entre os consórcios de grandes capitais operando na região e a estruturação do poder político.
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Numa visão em retrospectiva da industrialização e das políticas industriais no Nordeste concebidas na década de 1950, surge que há duas grandes vertentes de política, em que uma se remete a proteger o parque industrial existente, portanto, que são as de manter e atualizar estruturas produtivas já existentes, em sua maioria de bens de consumo, e de criar novos estilos de produção industrial e industrializada, que surgem como negação das formas de acumulação, que foram empreendidas no início do século XX. A proposta de industrialização da SUDENE pautou-se ainda pelo velho estilo de atrair indústrias e de apoiar projetos novos de velhas empresas regionais, tornando-se uma contradição com os delineamentos globais de política regional, que clamavam por uma reestruturação da economia regional em seu conjunto. A falta de uma articulação significativa entre a política industrial e as políticas de desenvolvimento rural seria o principal ponto fraco da política de desenvolvimento da SUDENE, que jamais reconheceu legitimidade dos movimentos sociais de reivindicação rural. Contra toda expectativa, a SUDENE dedicou-se a uma política industrial baseada em fomento de projetos individuais, que só foi revisada no governo Figueiredo, quando houve tentativas por parte do Ministério de Planejamento de focalizar em complexos industriais, avançando numa visão sistêmica do problema. A única grande exceção de fato da velha política industrial foi o complexo industrial de Camaçari, que reeditava, como proposta técnica, a primeira versão do Centro Industrial de Aratu. A visão dicotômica da indústria como antípoda da agricultura representou uma política de favoritismo de velhas empresas regionais, de que a SUDENE não conseguiu se separar.
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* Doutor e Docente Livre pela Ufba. Diretor geral do Instituto de Pesquisas Sociais.
[1] Em 1357 Fernando III de Castela invadiu a Andaluzia com o lema Um povo, uma língua, uma religião, duzentos anos antes que se estabelecesse a Inquisição.
[2] Ver o excelente estudo de José Roberto Amaral Lapa sobre A Bahia na carreira da Índia, que descreve essa função da Bahia no sistema comercial mundializado criado por Portugal.
[3] A continuidade do bloco de poder na política nordestina favoreceu o aparecimento de novos ricos, quase sempre beneficiados por vantagens de mercado e contratos com o governo, mas esse movimento não contradiz senão ajuda a explicar a atualização do sistema de poder. Os mecanismos de reprodução política do poder econômico certamente se aperfeiçoaram durante o regime militar, mas ganharam força na “nova” República, mediante mecanismos de aliança regional que se tornaram funcionais ao desenho político nacional. O fundamento dessa nova forma de poder vem sendo a articulação de uma aliança urbana com grandes empresas internacionalizadas com o controle político das bases municipais do sistema. As análises superficiais da mídia têm confundido esta composição política com coronelismo, que é uma modalidade rural de poder há muito superada.
[4] Cabe ver o trabalho de Stuart Schwartz sobre o papel do controle da burocracia na formação do sistema de poder político no Brasil colonial.
[5] Ver Cartas econômico-políticas sobre a agricultura e comércio da Bahia, Salvador, Fieb, 2004.
[6] O termo charque consagrado no Brasil é quéchua, do altiplano andino, e significa carne seca de llama. A origem espanhola na difusão do termo charque é indiscutível e refere à relação indireta com o altiplano andino através da Argentina. O nome ibérico desse produto é o espanhol tasajo , que nunca foi usado no Brasil. A expressão cecina , de significado mais amplo, ficou restrita a pequenas áreas da América do Sul e tornou-se mais difundida na Mesoamérica. O uso de carne dessecada foi uma solução para as deficiências de distribuição de alimentos característica das colônias americanas, no ambiente que consagrou o consumo de bacalhau seco importado por não organizar a pesca para suprir a demanda de alimentos.
[7] Em diversos pontos do Nordeste, desde Juazeiro do Norte a Campina Grande, Garanhuns, Feira de Santana, Itabaiana, Propriá, surgiu uma produção coletiva que se situava entre grande artesanato e manufatura, que foi capaz de produzir mercadorias tecnicamente sofisticadas, como armas de fogo e relógios, e calçados e roupas em grande quantidade, que prosperou entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX. Essas atividades de pequenos capitais, que representaram uma importante fonte de emprego urbano, foram olimpicamente ignoradas pelos programas públicos de fomento da indústria. Pode-se afirmar que o financiamento da indústria no Nordeste sempre se direcionou aos grandes capitais locais.
[8] Essa situação ficara claramente demonstrada no planejamento econômico estadual, que já era praticado na Bahia, em Sergipe e em Pernambuco. Os documentos da CPE (Bahia), do CONDESE (Sergipe) e do CONDEPE (Pernambuco) dão testemunho de uma tentativa de política industrial que encontrou eco na atividade da Carteira Industrial do Banco do Nordeste durante a década de 1950 e que não poderia ser ignorada pelo planejamento industrial da SUDENE. Entretanto, já o planejamento estadual identificava os objetivos de uma industrialização seletiva, que foram abandonados depois do golpe de Estado de 1964. Prevaleceu a política de atração indiscriminada de indústrias, que serviu para que empresas que estavam em dificuldades no sudeste se acolhessem às vantagens do Nordeste.Desde então, tanto os estados do Nordeste como os órgãos federais na região passaram a aprovar projetos apenas por sua rentabilidade direta. O Banco do Nordeste deixou de ser um banco de desenvolvimento para limitar-se a funções de apoio a todo tipo de empreendimentos rentáveis, com notável concentração em pequeno número de usuários. A crítica desse modelo de fomento seguiria no sentido oposto ao do governo federal, que passou a realizar políticas assistencialistas na região em geral desde o início da “nova” República.
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este artigo foi publicado no livro "Celso Furtado e a Formação Econômica do Brasil" pela Ordem dos Economistas do Brasil

terça-feira, 28 de julho de 2009

A CRISE DO CAPITALISMO CENTRAL

Realidade histórica e percepção da crise

O capital triunfante, que se sentia seguro sobre a vitória política do neoliberalismo, não contabilizou os riscos que acumulava com a combinação mortífera de uma rentabilidade escritural montada em especulação, com uma propensão ao consumo que há muito deixou de ser marginal. Os deslocamentos na composição do sistema mundial de poder, que já se tornaram incontestáveis, representam os sintomas de uma contradição na base da sustentação do sistema econômico globalizado, apareceram no endividamento generalizado dos sistemas nacionais e no aumento exponencial dos custos de energia. A cena da crise se montaria sem que seus personagens percebessem sua profundidade.

A crise não é um fenômeno técnico, é um processo social, econômico e político, que envolve responsabilidades que devem ser identificadas e culpas que devem ser assumidas. Esta crise surge da voracidade do capital especulativo, que é animada pela autorização tácita para especular de modo incontrolado pela sociedade. A expressão crise aqui se refere às turbulências do sistema capitalista de produção, que não podem ser confundidas com crises bíblicas nem com desastres naturais de esfriamento e ou de aquecimento da calota polar. A noção de crise está ligada ao modo de transformação da sociedade do capital que persegue fins não confessos (Coletti, 1978). Por isso, a explicitação da relação entre fins e meios configura um embate ideológico.

A divisão entre os que acham que as crises são incidentais ou que são orgânicas ao sistema capitalista de produção sempre foi um corte essencial da análise da economia mundial. De um lado, está a perspectiva histórica e de outro lado estão os neoclássicos e neo-schumpeterianos. A suposição de que as crises são incidentais, ou que ela são fruto de deficiências circunstanciais de gestão do capital, é que permitem sustentar um discurso oficial que atribui esta grande crise a incompetência bancária ou a perda de controle do endividamento dos grupos médios de renda sem jamais reconhecer que haja desvios de conduta. Perdem-se de vista, por descuido ou por opção, a complexidade do processo da crise e a combinação de fatores que se encontra em seus fundamentos.

A visão em perspectiva histórica do processo da crise no desenvolvimento da produção capitalista revelou como a teoria dos ciclos econômicos constitui um divisor de águas entre as teorias da economia nacional e as do capital (Coletti, 1978), assim como uma divisão entre as hipóteses teóricas de ciclos do sistema produtivo e de ciclos dos negócios. O aumento de complexidade do sistema e da volatilidade do capital, torna necessário examinar como se coloca historicamente esta crise e como ela é percebida pelos diversos participantes da economia mundializada, tanto pelas nações como pelos grupos privados. A hipótese básica escolhida é que a inserção na esfera efetivamente globalizada é desigual e variante, entre os componentes do bloco hegemônico e os que integram as diversas periferias com suas condições desiguais de industrialização e urbanização.

Ao reconhecer que há um centro e uma pluralidade de periferias no sistema mundial do capital, com diversos modos de interação, somos levados a entender que precisamos de uma reflexão sobre o modo de funcionar da sociedade do capital, que nos mostre como esta crise é gerada e como se transmite. Para alcançar esse objetivo, precisamos de uma reflexão sobre o capitalismo central, através de seu centro hegemônico que é a economia norte-americana, com seu modo de se reproduzir e de participar da economia mundializada. A crise hoje aparece como uma disfunção da economia norte-americana que se projeta sobre o mundo, mas não como um movimento próprio da reprodução do campo mundializado. A articulação do poder econômico e do político que comanda o mundo globalizado resiste a reconhecer que se trata de uma crise do processo do capital, mas age em função desse dado, alterando o controle do capital financeiro, desprivatizando o controle de instituições financeiras e estatizando bancos. O contraste entre o discurso e a ação fica mais claro quando se vê que o modelo de centralização do poder econômico é mantido: apoio a bancos antes que a pessoas.

Essa desordem segue sua forma inicial, e se propaga no componente europeu do bloco hegemônico como uma brecha no setor imobiliário, quando nos EUA já atinge camadas mais profundas da formação de crédito. Há um problema específico da conexão entre os mecanismos internos da reprodução do sistema e os mecanismos que respondem pela articulação da esfera mundializada. No plano interno há uma distância entre as aplicações de recursos de poupança, que têm aversão a risco e buscam renda garantida e as aplicações dos setores em expansão e do capital financeiro especulativo, que tratam de maximizar renda e têm que aceitar riscos. Esta é uma base da crise do setor imobiliário, que é onde esses dois tipos de aplicações se encontram. No plano internacional os movimentos de capital financeiro se realizam sobre informações reflexas de desempenho de mercados, que são agregações de representatividade variável de desempenho de empresas.

Não há dúvida sobre a origem interna desta crise, que foi apresentada ao mundo como originada no setor imobiliário. Mas, sem desmerecer da força desse argumento, resulta-nos impossível separá-lo do modo de reprodução do centro hegemônico e esta, sem dúvida, é uma combinação de elementos econômicos, institucionais, culturais e militares. A crise financeira combina sempre uma crise de confiança, que é subjetiva, com um desajuste entre propostas de produção e condições de demanda, que é uma situação objetiva. O fundamental é verificar como o sistema processa a crise e como sai dela. As crises são tão complexas como o sistema produtivo é complexo e tão rápidas como ele opera. A questão agora é que a crise de confiança se encontra com situações concretas de desajuste entre as condições de risco do capital tecnicamente avançado e as condições de segurança necessárias para os pequenos capitalistas.

As manobras do capital financeiro, entre aplicações em mercados em expansão – comparadas com aplicações em mercados estagnados ou de baixa rentabilidade – acabou por comprometer os controles técnicos das margens de risco, na prática aumentando as vantagens do grande capital que tem melhores condições de tratar com condições variáveis de riscos. Essa perda de controle sobre a administração dos riscos permitiu que as grandes empresas aplicadoras de dinheiro se excedessem em aceitar riscos que já eram compatíveis com os rendimentos daqueles que contrataram hipotecas e que não poderiam pagá-las. Não cabe acusá-las de especuladoras porque sua função no sistema é especular.

As informações relativas a esta crise, que se apresentou na forma de uma crise interna dos EEUU que se expande ao mundo do capitalismo através do mecanismo da bolsa de valores, mostraram a força de mecanismos de conexão entre os fundamentos da economia interna da nação hegemônica e o modo de funcionamento da esfera globalizada. O custo da hegemonia está no centro da questão e compreende a manutenção de padrões de consumo com componente suntuário cada vez maior e os custos de sustentação do poderio militar. Não é por acaso que o Império sinaliza uma retirada ordenada do Oriente Médio, adotando medidas de compensação na defesa de Israel.

Neste contexto, a opção pela abordagem histórica é imperativa. Na construção de uma análise separada dos preconceitos da ortodoxia marginalista é preciso, primeiro, delimitar o poder explicativo dos argumentos “normais” ou ortodoxos, ou colocá-los diante do que são novos argumentos decisivos na crítica da atual hegemonia. Assim, cabe destacar o custo social cumulativo do grande consumo, isto é, a combinação de consumo de luxo com quantidades de consumo incontrolado. É o consumo dos grupos de alta renda, que está concentrado nos países mais ricos, especialmente nos EEUU. Esse grande consumo civil não parou de crescer desde o fim da Segunda Guerra Mundial, aceitando-se como um dado necessário da sustentação da produção capitalista, sem admitir que ele represente um desgaste do sistema de recursos físicos. Se os usos maciços de combustíveis no inverno são irrecusáveis, o mesmo não pode ser dito da potência dos automotores e do uso incontrolado de ar condicionado. O argumento sobre o grande consumo está ligado à lógica fundamental da sociedade de consumo. (Baudrillard, 1968), mas atinge um problema muito mais profundo da lógica da reprodução do capital nas sociedades avançadas, onde grandes áreas de consumo foram afetadas por modificações das condições materiais de vida que parecem mais sólidas do que realmente são. O aparecimento de uma visão crítica desse viés do processo do capital pode ser reconhecido como uma manifestação contraditória de uma consciência oriunda de posições de classe que caracteriza as camadas mais ricas da estrutura social. O deslocamento de identidade de que nos fala Hall(2006) resume uma fragilização da situação de pertenência que se encontra na identidade nacional entre os latino-americanos em geral, mas que compartilha raízes regionais mais fortes entre os europeus ou raízes etno-culturais entre os norte-americanos. O grande problema da mobilidade social revelou aspectos descuidados dessa volatilidade da condição de identidade, que se projeta na atividade política em geral e na desconfiança apriorística de tudo que se identifique com ideologia. As atitudes perante a questão do ambiente são as mais evidentes e que revelam uma revolução do consumo que deve ser examinada em sua totalidade junto com condições contraditórias de solidariedade dadas por um individualismo gerado por essa perda de identidade.

Por causas naturais

Curiosamente, o reconhecimento da importância dos processos naturais na economia deveu-se ao cientificismo do fim do século XIX, que advogava o controle da natureza, antes que à consciência da ecologia, quando ainda não se incorporava o conceito de ecologia. A questão hoje consiste em saber como se insere a visão das causas naturais na construção de um pensamento cientifico posterior à inclusão dos conceitos de complexidade e de caos, quando se entende que o sistema socioprodutivo é atingido por processos culturais que se apresentam como imprevistos, mesmo quando sua aparente incerteza se deve a que eles são parte de outras escalas de tempo não controladas como é o caso do degelo da calota polar ou da corrente de El Niño.

Os fundamentos naturais das crises econômicas tiveram certa projeção no passado, quando se pretendeu formar uma visão integrada dos ciclos do sistema produtivo (Haberler, 1958), que não se limitava ao horizonte dos negócios que depende de uma visão microeconômica do problema (Schumpeter, 1961). Se bem que esses cuidados com os fundamentos naturais das crises aconteceram antes as análises de impacto ambiental ganhassem a acuidade que têm hoje, eles tiveram a virtude de mostrar a necessidade de estabelecer padrões de raciocínio compatíveis com o reconhecimento de que a sociedade de hoje funciona com padrões de complexidade crescente. Surpreende, portanto, que os efeitos dos furacões Katrina e Ike não tenham sido reconhecidos entre as causas da irrupção da crise na economia dos EUA. A economia norte-americana tem estado submetida a processos naturais violentos como os furacões, porém estes, especificamente, atingiram o sistema de produção de petróleo e derivados.

A não consideração desses elementos reforça a crítica de que há uma simplificação indevida na análise das causas da crise. Como se os ciclos pudessem se formar apenas no sistema financeiro. Ciclos econômicos e crises teriam que ser tratados numa perspectiva sistêmica, onde as noções de processo e de totalidade são essenciais (Marchal, 1959). A subordinação da noção de crescimento à de tendências inerentes a estruturas e historicamente situadas seria um requisito necessário a uma análise econômica realista (Nurkse, 1961). Hoje está claro que o processo do pensamento keynesiano, que se apresentou como mais avançado que o velho marginalismo de Jevons e Marshall, foi um aluno deles, que se envolveu em reducionismo monetário. A corrente neoclássica hoje atingida pelas práticas intervencionistas dos Estados ricos, representa uma total incapacidade para colocar a análise econômica em termos de tempo real. Não surpreende, portanto, que a percepção da crise tenha se restringido ao circuito imediato das transações financeiras e tenha descartado os efeitos dos processos naturais.

Precisa-se agora recuperar o significado das causas naturais na formação de ciclos a partir da perspectiva social. A influência das causas naturais deve hoje ser colocada em um quadro de aumento proporcional dos efeitos indiretos dos processos naturais no sistema produtivo em seu conjunto, portanto, com efeitos que se prolongam no tempo, seguindo trajetórias desiguais. O modo mais razoável de observar esses fenômenos parece ser o de registrar os pontos de impacto e acompanhar o desdobramento dos efeitos secundários segundo se formam impactos derivados combinados que geram novos rumos da expansão ou da contração do sistema produtivo. Esta abordagem de análise de circuitos, que tem sido usada por biólogos e em sua contribuição à análise da ecologia (Okum, 2006) em geral, tem um ponto de especial interesse, que é o cruzamento de efeitos meramente objetivos com a subjetividade dos processos sociais. Como as crises econômicas são sempre deflagradas através de mudanças coletivas de comportamento, é preciso colocar essas mudanças de comportamento como leituras culturalmente definidas de dados objetivos dos processos naturais.


A revolução do consumo

O desenvolvimento do sistema capitalista de produção envolve uma transformação do consumo, em que há uma distribuição do consumo atual possível e uma apropriação da capacidade de consumir realimentando o mecanismo social da desigualdade. O problema, diz Conceição Tavares, “da forma assumida pelas relações de produção com sua historicidade e seu desenvolvimento contraditório, fica reduzido a uma luta pela distribuição do excedente, que termina numa luta pela distribuição do consumo”
[1]. O que se passa aqui a denominar de revolução do consumo é um movimento geral de aumento de quantidades e de ampliação da variedades das mercadorias consumidas, que compreende as transformações do consumo dos segmentos mais ricos da população mundial e a inclusão de massas, à condição de consumidores principalmente nos países periféricos ascendentes. Vários autores marcaram o grande choque cultural que representa a chegada no ambiente do consumo aparentemente ilimitado dos grupos de maior renda mesmo em países periféricos como a Índia, a Rússia e o Brasil. A revolução do consumo não pode ser reduzida aos termos de consumo individual, por mais importante que ele seja, simplesmente porque transcende a esfera das pessoas, ao representar o descobrimento de um imperativo de interesse coletivo, que aparece em temas tão variados como os códigos de trânsito, as leis contra poluição sonora ou a legislação de proteção de mananciais. O condicionamento coletivo do consumo individual se estende aos diversos níveis de renda, apesar de que obviamente diminui progressivamente para os grupos de maiores rendas.

O fundamento ideológico da revolução do consumo provém de que ela compreende as duas etapas de difusão de padrões e de desconstrução e superação de padrões, tal como acontece com as populações superurbanas
[2] , que procuram estilos de vida que dispensam o automóvel próprio e os trajes formais. Em sua essência, a revolução do consumo é um movimento que converte cultura em economia, mas que opera de modo contraditório com a acumulação. A centralidade do consumo cria padrões de valor que não são compatíveis com a realidade da formação da renda disponível. O endividamento tornou-se parte essencial do funcionamento do sistema, onde se combinam o endividamento externo das nações, o endividamento interno dos governos, o das empresas e o das pessoas.

No ambiente econômico modulado segundo os modos culturais do grande capital, a progressão do consumo se separa por completo dos horizontes dos grupos médios de renda, guiando-se mais por referências de símbolos restritos de classe que por eficiência do consumo. A difusão dos meios de comunicação permitiu que as maiorias tomem conhecimento de padrões de consumo que não podem sequer ver, mas que se tornam referências idealizadas nas novelas e nas revistas de modas. É preciso, portanto, distinguir a revolução do consumo dos grupos de rendas elevadas da revolução do consumo das populações numerosas dos grandes países ascendentes. Esta é a revolução do consumo, que se realiza com a incorporação progressiva de grandes números de pessoas que se tornam consumidores, com perfil de consumo inicialmente muito simples, mas com extenso impacto quantitativo e rápida diversificação.

A nova revolução do consumo periférico ascendente atinge o sistema da economia mundial induzindo os produtores a reprogramarem suas metas e planos de produção, portanto, atingindo o modo de expansão do mercado mundial. Sinteticamente, a revolução do consumo é uma força transformadora da economia mundializada que cruza com outro elemento fundamental de uso de recursos, que é a despesa militar. Nas décadas de 50,60 e 70 os principais movimentos da revolução do consumo aconteceram por conta dos EUA e da Europa ocidental. Desde então cresce o consumo asiático liderado pela China e aparece o consumo das novas nações árabes ricas e da América Latina. Há um componente de despesa militar dos diversos países, segundo o papel que cada um deles desempenha em escalas regionais de poder e a despesa que é determinada pela hegemonia econômica, política e militar. O custo da hegemonia está hoje no centro da questão, porque a nação hegemônica realiza despesas imensas para manter sua posição e deixa de dispor de meios para transferir os custos das guerras para outras nações. A referência geral de que as despesas militares norte-americanas se comparam com as das demais nações em seu conjunto indica a insustentabilidade dessa situação em médio e longo prazo, com uma previsão, quase inevitável, de uma redução relativa do poder econômico e militar dos EUA frente a nações de grande porte e melhor dotadas de recursos energéticos.

Percebem-se dois modos de lidar com essas questões, que são os de comparar o peso das despesas com o esforço bélico na despesa nacional tota e de comparar as despesas bélicas com as de educação, onde estas sejam representativas do campo social em seu conjunto. Em ambos os casos são implicações de uma distância crescente entre a reprodução social em geral e a reprodução do capital integrado aos mecanismos diretos de poder. Há uma questão relativa aos mecanismos do capitalismo central hegemônico e aos do capital sub-hegemônico ou adstrito ao poder econômico, mas sem poder militar, que é o caso da Europa ocidental. A União Européia não poderia montar sua nova lei de imigração nem adotar um colonialismo sutil pós-colonial se não estivesse amparada pelo poderio bélico norte-americano. Inversamente, pode-se dizer que a crise do capitalismo central tende a por a Europa numa posição defensiva e a mudar suas políticas em relação com as nações periféricas. Afinal, não é por acaso que a atual política de pilhagem de recursos humanos qualificados vem junto com políticas diferenciadas país por país nem que as políticas de financiamento revelam um movimento de expansão na América Latina.


Os mecanismos da produção social da crise

“O mercado que se auto-regula e que penetra completamente na sociedade não passa de utopia da sociedade burguesa” Agnés Heller

A crise atual assusta por suas proporções e por se desenvolver por imprevistos no coração da nação hegemônica. No entanto, não deveria surpreender tanto, se considerados os sintomas de tensões sem solução no modo de reprodução do capital em seu maior centro de financiamento. À parte do fato de que o sistema do capital opera mediante combinações de capitais que têm diferentes condições de inserção no mercado de dinheiro, há diferenças de velocidade de circulação que desviam o dinheiro capital para onde ele pode circular mais rápido. As revoluções tecnológicas do período de 1960 a 1980 acentuaram essas diferenças e fortaleceram a posição dos mercados em expansão na condução dos rumos do capital. O caráter cíclico fundamental da reprodução do capital, que já mostrava alterações de seus intervalos de tempo e de duração desde a Guerra da Coréia, mostrava-se agora modificado pelas novas diferenças entre economias nacionais em expansão e economias quase estagnadas. As grandes corporações e as empresas mais criativas passaram a se deslocarem mais na direção dos mercados em expansão, o que significa se transferirem mais para a China, Rússia, Índia e Brasil, em parte subordinando a reprodução do capital europeu a esses mercados e em parte decretando a necessidade do mercado norte-americano de reagir de modo satisfatório para absorver essa nova situação. A economia norte-americana concorre com a China pela aplicação de seu próprio capital, onde há diferenças de prazos e de retornos entre aplicações com diferente capital social básico e diferentes condições de remuneração do trabalho. Há, portanto, uma novidade no quadro da formação do ciclo, no que ela se gesta na relação entre os integrantes do capitalismo central e em sua relação com as periferias do mundo econômico, onde passam a ser determinantes as diferenças de condições concretas de reprodução do capital, que estão representadas pela relação orgânica entre os mercados em expansão e os mercados semi-estagnados.

Assim, sob condições diferenciadas de remuneração dos capitais aplicados, mudam as condições de articulação entre a produção de bens de consumo e a de bens de capital, modificando-se a velocidade de reposição de equipamentos em cada um desses dois departamentos, ,portanto, mudando as condições sociais da formação do ciclo. Parte-se do mesmo ponto de sempre, de que a produção capitalista é um processo cíclico em espiral, que se realiza através de mudanças irreversíveis na composição do capital e onde coexistem diferentes tipos de movimentos cíclicos e onde mudam as condições técnicas da formação dos ciclos.

A explicação dessa tendência incoercível à crise descansa em duas observações principais que ligam a necessidade de reproduzir cada vez mais capital acumulado com os custos dessa acumulação em termos de energia, onde essas duas condições se refletem em momentos de riscos do sistema como um todo. Retomando um argumento fundamental de Adam Smith, vale reconhecer que a acumulação entranha um mecanismo cumulativo do capital, que tem os dois aspectos de tornar necessário encontrar oportunidades para aplicações compatíveis com a posição do capital já acumulado; e de conseguir que as novas aplicações não estejam submetidas a riscos maiores que aqueles aderidos aos investimentos já iniciados.

Distinguiremos as condições ambiente de risco da progressão de riscos de cada empreendimento; e entenderemos que o perfil dos riscos muda quando as decisões sobre riscos saem do interior das empresas e se tornam parte das regras de participação em mercado. Por exemplo, as empresas passam a conviver com demandas de incluir trabalhadores que têm direitos mais caros que os da média e trabalhadores portadores de doenças transmissíveis. A sustentação da capacidade produtiva, isto é, a reprodução simples do sistema produtivo pressupõe a possibilidade de situações invariantes de riscos. Mas, o sistema jamais se reproduz sem alterações tecnológicas, pelo que na prática a reprodução sempre incorre em riscos, já que a abertura de novas oportunidades de aplicação de capital tende a não acompanhar a necessidade de aplicação. Este mecanismo, incorporado na formação do capital de alta tecnologia, faz-se cada vez mais presente nas economias mais avançadas. Observamos que a economia norte-americana conquistou a função principal de centro financeiro mantendo sua posição de principal mercado industrial, apesar de ter erodido sua capacidade de concorrer no mercado industrial e por seus custos mais elevados que os das economias industriais ascendentes. Essa é, justamente, a grande questão que nos impede de usar a velha divisão entre centro e periferia, quando se trata de que a China, a Rússia e a Índia progridem como economias industriais e com vantagens de custos sobre os EEUU, invertendo a posição de periferia exportadora de matérias primas para a de periferia usuária de matérias primas. A contradição de interesses entre situações de periferia surgem conflitos de interesse no campo da periferia, cuja substância é o controle, direto e indireto de trabalho. São conflitos que aparecem como interesses nacionais, mas cujo conteúdo de relações de classe não pode ser ignorado.

Por isso, para avançar nesta indagação será preciso estabelecer algumas hipóteses iniciais descritoras do modo atual da sociedade do capital avançado. São duas hipóteses que se combinam. A primeira delas é que os custos da reprodução do sistema, representados pelo grande consumo e pelas despesas militares, tornaram-se excessivos, frente as condições de remuneração do capital, nas economias do bloco hegemônico. A segunda hipótese, ligada à primeira, é que a conta de energia, em seu sentido mais amplo, compreendendo usos diretos e indiretos de energia, torna-se excessiva para o bloco hegemônico. De serem válidas estas hipóteses, por conseqüência, será preciso admitir que o desempenho energético da economia será decisivo na determinação de sua capacidade de crescer sem entrar em processos de bloqueio e crise.

A conta de energia sintetiza o desequilíbrio orgânico do sistema, cuja reprodução simples incorpora custos de substituições e ampliações da base produtiva, que comprometem a constituição do fundo de investimento. Manter a capacidade produtiva requer custos crescentes. A realização da reprodução simples acarreta custos progressivamente crescentes, que surgem do esforço necessário para garantir insumos que se tornam escassos e mais caros. A ultrapassagem tecnológica que aparece nos setores que mantêm mediante renovação, tais como a informática, a biotecnologia e a nanotecnologia, também acontece em setores ditos tradicionais, tais como a indústria de vestuário e a de alimentos. A rigor, a reprodução simples tal como é definida como referência de análise por Marx é uma situação hipotética, já que em caso algum o sistema se reproduz exatamente como era sem alteração alguma. Essa inércia da reprodução simples – que aparece na forma da teoria do acelerador de Harrod – torna-se uma força essencial na dinâmica do sistema, que será dinâmico até para se manter estático. Em síntese, a reprodução simples se torna mais incerta à medida que os sistemas se tornam mais complexos.


Fundo de investimento, garantia de demanda e controle de riscos

A noção de fundo de investimento impõe-se como um modo de explicar a disponibilização de recursos no sistema produtivo para atender àquelas necessidades da formação de capital identificada com a reprodução do sistema socioprodutivo. O fundo de investimento se constitui do valor que é extraído do consumo por conta do poder de decisão do capital sobre a composição dos usos da renda na sociedade em seu conjunto, isto é, reconhecendo que o capital tem o poder de afetar o consumo através de sua capacidade de comprimir a taxa de salário.

As diversas evidências históricas de que os movimentos de acumulação mais intensa coincidem com compressão da renda do trabalho desenham um ambiente social de produção em que a acumulação se realiza mediante movimentos de aumento da taxa de mais valia e não só de continuidade das condições de exploração. Objetivamente, o fundo de investimento descreve a capacidade das instituições controladoras de capital de se apropriarem de uma proporção do valor socialmente disponível superior à taxa média de lucro e poderem direcionar sua aplicação. No Brasil, os fundos de previdência introduziram uma modificação substancial no sistema financeiro ao darem ao Estado a capacidade de direcionar investimentos segundo suas prioridades e de influir na determinação da rentabilidade futura.

Alguma polêmica anterior sobre o capitalismo avançado ou tardio terá que ser recuperada. Trata-se das modificações estruturais do modo de funcionamento do capitalismo plenamente internacionalizado e monopolista (Mandel, 1985), da legitimidade institucional desse capitalismo que se nega a passar por cima da liberdade de mercado (Habermas, 1972) ou ainda, das alterações das relações de classe que acontecem no ambiente social do capitalismo avançado. O argumento de Mandel é a leitura marxista por excelência do funcionamento da sociedade econômica do capital, que oferece uma visão necessária da totalidade do processo, que registra as estratégias do capital do capital, mas como se ele fosse uma entidade desprendida de suas condições operacionais concretas. Perdeu-se aqui um dado fundamental do discurso marxiano, de que o capital é uma totalidade historicamente concreta, que carrega os conteúdos culturais em geral, ideológicos e de conhecimento que são gerados na experiência da produção. Retomaremos este debate num ponto levantado por Marx no cap.XXXVI do Livro III de O Capital, quando expõe sobre a acumulação de capital dinheiro, que requer condições de aplicação suficientes para retornar esse capital ao sistema produtivo. A acumulação de capital especulativo torna-se um risco incorporado ao sistema no que as decisões individuais de preservação do capital acumulado revertem em conflitos de interesse no plano internacional.

A conta de energia sintetiza o desequilíbrio orgânico do sistema, cuja reprodução simples incorpora custos de substituições e ampliações da base produtiva, que comprometem a constituição do fundo de investimento. A rigor, a reprodução simples, tal como é definida como referência de análise por Marx, é uma situação hipotética, já que em situação alguma o sistema se reproduz exatamente como era sem mudança alguma. No panorama da economia mundial desde o fim da segunda guerra mundial, a conta de energia passou a representar a rigidez do consumo total de energia, mesmo quando o componente direto de energia no produto final diminui.

Quem realiza e quem comanda esse consumo? A sociedade do capital avançado é, essencialmente, o ambiente operacional do oligopólio, que é uma forma de mercado avessa a risco. Temos que levar a suas últimas conseqüências os argumentos de Cournot para estabelecer que o oligopólio não leva a atitudes defensivas das empresas, senão que surge de uma estratégia defensiva das empresas que trocam mais lucros por menos riscos. A aversão a riscos torna-se um traço característico do sistema, onde as grandes empresas têm mais capacidade de transferirem riscos que as pequenas e onde os contribuintes individuais não têm praticamente como transferirem riscos ou evadirem tributos. Nessa forma de mercado a arquitetura da captação de dinheiro poupado para realização de dinheiro capital compreende três elementos articulados uns com os outros. O primeiro deles é o circuito de captação de dinheiro da massa de salários e lucros distribuídos, que entra no sistema bancário já comprometida com um determinado perfil de compras. O segundo deles é o circuito de operações acionado pelos bancos, que vai em busca de aplicações rentáveis e com riscos controlados , que supõe relações estabilizadas entre os bancos e as empresas produtivas, isto é, que os bancos são funcionais à estratégia financeira das empresas. O terceiro componente é o circuito de despesa acionado pelo governo, que atinge o sistema produtivo através do acelerador da oferta de materiais para responder à despesa pública.

O fundo de investimento é a magnitude de dinheiro capital que se incorpora efetivamente à capacidade produtiva instalada nos meios de produção disponíveis. Enquanto o sistema do capital se desloca sobre estruturas tecnológicas conhecidas em estruturas de mercado invariantes pode-se pensar porque o fundo de investimento seja suficiente e compatível para satisfazer as necessidades de investimento para a reprodução simples do capital em geral. Torna-se, portanto, necessário examinar a validade dessa premissa. O argumento que se torna dominante nas condições operacionais do capitalismo avançado é, precisamente, que essas condições deixam de se cumprir em períodos de renovação tecnológica intensa e em setores da indústria onde a permanência no mercado depende de movimentos de renovação tecnológica e organizacional que têm o efeito reverso de desvalorizar o capital aplicado além da reposição de valor trazida pelos investimentos novos. Nessas condições o fundo de investimento será insuficiente para garantir a reposição da totalidade do capital aplicado e o sistema e o sistema dependerá de uma garantia de demanda que será algo além das expectativas de mercado e que se busca concretizar em contratos de longa duração. Logicamente, as previsões das empresas têm que se basear em toda essa engenharia de contratos de produção e de compras, onde os cálculos de custos e lucros têm que ser filtrados por estimativas de riscos.

Nesse ponto entra o papel da demanda pública no capital dinheiro, que precisa reduzir riscos para se manter no mercado. E esta será, seguramente, uma das principais razões para a combinação de Estado e empresa em política internacional de venda de tecnologia, desde equipamento para irrigação a equipamento militar e a tecnologia militar.


O longo curto prazo

A crise veio mostrar que a economia transcorre inevitavelmente no tempo real e não no pseudo tempo do deslocamento de variáveis. No essencial, o curto prazo é um ambiente de tempo real em que se registram eventos de curta, média e longa duração em arranjos de tempo sensíveis a diferenças de ordenamento apoiadas em cada um desses horizontes. O curto prazo é um espaço de contemporaneidade que não se confunde com o espaço virtual de pseudo tempo da análise estática. A diferença entre a percepção de curto prazo e análise instantânea determina uma compreensão dos ciclos, com a qual se reconstrói a visão do cotidiano na economia. A análise estática cobre apenas situações de pseudo tempo e não está aparelhada para tratar com a complexidade do curto prazo.

Em princípio, o curto prazo é um ambiente em que os eventos acontecem em tempo infinitesimal, ou onde a influência do tempo é nula. Por isso, é uma situação fictícia de tempo, já que em fração de tempo acontecem eventos que foram iniciados antes. A variedade de escalas de tempo com que se pode medir a duração dos fenômenos resulta no fato concreto de que não há condições de tempo senão de intervalos de tempo que têm diferente densidade fenomênica. Realisticamente, a análise social tem que partir de hipóteses fundadas em condições de tempo significativo. Com isso, se atribui outra dimensão de tempo ao curto prazo, que se torna uma referência significativa na composição de um ambiente de prazos mais longos.

Sobre essa base será possível rever os significados do tempo no contexto dos processos da crise. Em economia se aplica o princípio de que a percepção do tempo é desigual e que os momentos cruciais se sentem como mais longos. Por várias razões, como procuramos mostrar, a crise econômica tem fundamentos econômicos, políticos e culturais, que se combinam segundo elementos previsíveis de desempenho do capital e elementos incontroláveis da natureza.

O curto prazo é uma realidade complexa que não pode ser refletida pela análise econômica do instantâneo. O que é atual ou contemporâneo em economia é uma composição de processos iniciados antes, que têm diferentes durações e uma diversidade de influências de uns sobre outros. Desde qualquer ponto momento de referência há um horizonte de visibilidade do processo econômico no espaço-tempo dessa composição de eventos, em que as condições de confiança decrescem, progressivamente, e em que a diminuição dos elementos de certeza coincide com a identificação de elementos de incerteza e de indeterminação que se mantêm ou se ampliam, A diferença entre a percepção de curto prazo e a análise instantânea determina uma compreensão dos ciclos, com a qual se reconstrói a visão do cotidiano na economia.

Em princípio, o curto prazo real não se confunde com o ambiente instantâneo da análise estática. O curto prazo tem durações definidas enquanto a análise estática é um ambiente em que os eventos acontecem em tempo infinitesimal, ou onde a influência do tempo é nula. Por isso, é uma situação fictícia de tempo, já que em fração de tempo acontecem eventos que foram iniciados antes. A variedade de escalas de tempo com que se pode medir a duração dos fenômenos resulta no fato concreto de que não há condições de tempo senão de intervalos de tempo que têm diferente densidade fenomênica. Realisticamente, a análise social tem que partir de hipóteses fundadas em condições de tempo significativo. Com isso, se atribui outra dimensão de tempo ao curto prazo, que se torna uma referência significativa na composição de um ambiente de prazos mais longos.

Sobre essa base será possível rever os significados do tempo no contexto dos processos da crise. Em economia se aplica o princípio de que a percepção do tempo é desigual e que os momentos cruciais se sentem como mais longos. Por várias razões, como procuramos mostrar, a crise econômica tem fundamentos econômicos, políticos e culturais, que se combinam segundo elementos previsíveis de desempenho do capital e elementos incontroláveis da natureza, segundo regras da própria imprevisibilidade. É o que acontece, por exemplo, com alterações de hidrometria no ambiente semi-árido, que podem ser externamente determinadas, como por El Niño, e que não podem ser descartadas unicamente como um dado da incerteza do ambiente semi-árido. A concentração de informações no tempo permite distinguir grosso modo situações diferenciadas de certeza, que, para fins de simplificação, denominamos de curto, médio e longo prazo. O curto prazo é o espaço de eventos que nas condições atuais do capital,onde os programas de produção são concebidos e realizados com a referência da atual capacidade de produção. O que vem a ser o médio prazo é o ambiente onde os programas de produção se realizam com substituição de técnicas e de formas de organização inerente à renovação tecnológica. A isto passou a somar-se o fato de que esse processo se realiza sobre quantidades crescentes de capital acumulado e com concentração da capacidade de decidir sobre os usos de capital. No conjunto, a percepção da renovação do sistema produtivo em horizontes móveis de tempo remete a conceber o sistema como constituído de componentes regidos por variados graus de incerteza, que se tornam mais influentes quando os movimentos de valorização e de desvalorização de capital - associados à renovação técnica – predominam sobre os elementos de continuidade do sistema.

A redução dos tempos de difusão de inovações técnicas, que se acelerou junto com a informatização da gestão do capital, fez com que o sistema produtivo se tornasse mais sensível aos fatores de instabilidade, com que o grande capital vem desempenhando um papel de auto-regulação, através do controle oligopolístico da renovação e da difusão de tecnologias, criando uma brecha de mercado entre a produção de inovações e a difusão. Como os graus de monopólio das diversas etapas do processo da tecnologia são diferentes e variam desigualmente, os impactos do sistema da tecnologia no processo dos investimentos tende a deslocá-lo na direção de maior instabilidade.

Este argumento terá que ser considerado como parte de um conjunto de tendências que convergem sobre o sistema do capital, fazendo com que seu modo de se reproduzir aumente sua sensibilidade à incerteza. Esta é a pista a ser seguida no desenho do novo perfil da crise no capitalismo central. Não há mistério em que o sistema do capital tem sido acionado por contratos de governo, onde a maior massa de demanda pública é, justamente, a do bloco hegemônico. Neles, a participação das despesas militares contamina de modo decisivo a tendência da despesa e coloca as inovações do setor militar na frente do sistema.

As despesas militares são um traço constante na evolução da sociedade do capital desde a ascensão do Império Britânico, mas se tornam preponderantes, em parte porque os meios da guerra se tornaram mais tecnificados e mais caros
[3] porque há um custo praticamente incontrolado da manutenção da máquina de guerra, que se confunde com os custos de sua atualização. Além disso, a despesa militar tornou-se irreversível como parte de um equilíbrio de poder que aparentemente não registra os insucessos do poder militar do capitalismo central[4].


A soma de todos os medos: a crise de confiança

A cara visível da crise financeira é a de uma crise de confiança que se alastra através de mecanismos de articulação da reprodução do capital financeiro com o sistema produtivo. Esse é o seu componente subjetivo. Por trás dessa máscara há desajustes e pressões concretas nas relações entre segmentos do capital que regulam o modo como se realizam os movimentos dos diversos detentores de capitais e que regulam o modo como se realiza o processo geral de acumulação. Nessa situação estão as diferenças entre os interesses dos pequenos poupadores, das empresas em expansão
[5] e dos grandes bancos. Os pequenos poupadores precisam de aplicações de baixo risco, as empresas em expansão precisam de dinheiro barato e os bancos lucram com crédito. Fatores tais como a demanda de dinheiro de países ascendentes, de empresas em expansão pressionadas por um mercado oligopolizado e despesas militares pressionam o mercado financeiro, onde a concorrência por dinheiro pressionam o mercado financeiro, onde a concorrência por dinheiro novo pressiona as taxas de juros. Surge, então, uma brecha no mercado imobiliário, quando a renda dos pequenos poupadores não é suficiente para pagar suas hipotecas. Há um efeito dominó na base do sistema, que simplesmente opera com taxas incompatíveis com as expectativas do mercado financeiro.

Não há justificativa para explicar simplificando, dada a complexidade dos mecanismos que realimentam o processo da crise. Mas é preciso seguir a pista da ligação entre o processo da crise como e enquanto ela é um corte brusco na oferta de dinheiro e como processo que seleciona o financiamento direto de atividades produtivas do financiamento da reprodução financeira do capital. A formação de novos núcleos de dívida, como nas vendas de novos imóveis, implica em um novo problema de transferir os novos custos para um sistema financeiro esgotado que já não poderá contar com o resgate do Estado. O fim da crise é o empobrecimento dos ricos e o aprofundamento da pobreza dos pobres. São dois processos diferentes interligados, o da demanda de capital por parte das empresas e o de extrair lucro de especulações sobre as expectativas de produção. Voltamos à observação anterior de que o capital financeiro não cria demanda.

O sistema financeiro se move acionado pela demanda de capital e seria um erro reduzi-la à demanda de habitação das pessoas. Ela simplesmente se converte em demanda de capital das empresas que operam a construção civil e é nesta forma que chega ao circuito do capital financeiro, passando a fazer parte de um fluxo geral de demanda de capital, onde converge com as necessidades das empresas que operam com expansão de negócios e com as demandas do setor de armamentos. A separação entre a esfera pública e a privada se dissolve por completo, pelas mesmas razões que sustentaram a construção do poder hegemônico, que foram a garantia pública do endividamento privado e a sustentação da despesa militar. A securitização da dívida, que marcou a retomada do poderio norte-americano no início da década de 1980, na realidade consagrou uma prática essencial ao sistema, que consiste na assunção do passivo privado pelo tesouro público que se torna o fator de realimentação da dinâmica do sistema do capital.

A reprodução do capital acumulado obrigou o sistema econômico a aceitar como necessários os custos da sustentação do endividamento privado, que se tornaria relativamente mais oneroso enquanto a economia do capitalismo central deixa de ser a que se expande ou cresce mais rápido e acumula dívida externa. Encontra-se uma contradição do sistema conduzido por oligopólios, que operam de modo defensivo. O capitalismo precisa expandir os horizontes de demanda com que opera, em seu interior ou nas economias ascendentes. Hoje as diferenças de escala e de condições operativas de mercado interno entre os EEUU e os países da Europa Ocidental fazem com que a economia norte-americana deva resolver problemas de seu crescimento próprio que não podem ser cobertos no mercado europeu, por mais que as economias européias possam injetar dinheiro no sistema norte-americano. Trata-se de um problema de demanda que tenderá a se agudizar no momento em que o estímulo da despesa militar desemboca em custos de difícil absorção. É uma nova forma de marginalização, que acontece na esfera dos países aliados do bloco dos mais ricos e que encontra reforço na perspectiva de esgotamento da capacidade de crescer das nações periféricas do mundo rico. Não surpreende que o potencial de desenvolvimento dos países europeus de pequeno porte diminua, assim como que as estratégias de recomposição e de crescimento dos Estados Unidos tenham se deslocado para suas relações com a China.

Em síntese, nestas condições o curto prazo deixa de ser o espaço definido por aplicações em curto prazo para ser o espaço de impacto imediato de tendências ajustadas definidas pelo modo de reprodução do capitalismo central. A confiança no mercado depende da capacidade de compreender como ele funciona. A distância que há hoje entre as causas mais profundas do ciclo e suas manifestações superficiais reduz a análise da atualidade às causas do curto prazo, impedindo-a de ver a engrenagem da relação entre a esfera econômica e a esfera política.


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[1] Maria da Conceição Tavares, Ciclo e crise 1998,pp.48.
[2] Denominamos de super urbanos aqueles grupos integrados em cidades que incorporaram formas de vida social que superam as formas de consumo coletivo mecanizado e padronizado e que se tornam diferenciais em relação com os grupos de rendas médias superiores. É uma designação que se coloca além da urbanização tecnológica e que contempla os modos culturais de cidades que incorporam ou modificam ou rejeitam formas de urbanismo identificadas com o moderno. Na urbanização do Brasil encontram-se segmentos super urbanos que convivem com segmentos suburbanos, que protagonizam uma urbanização negativa, de favelização e marginalização.
[3] Será revelador comparar os custos de equipar cada soldado de infantaria na segunda Guerra mundial, na Guerra do Vietnam e na Guerra do Iraque. Algumas cifras gentilmente cedidas por Carlos Costa Gomes (Ce. Ret.) são reveladoras. De uns 1.000 dólares por homem na segunda guerra mundial passou-se a uns 10.000 na guerra do Vietnam e a uns 100.000 na guerra do Iraque. O aumento exponencial do capital aplicado por militar engajado no conflito também compreende alterações na relação entre o número total dos militares e aqueles diretamente engajados em operações. Como a maior parte do investimento encontra-se em equipamento coletivo, desde helicópteros a veículos de transporte etc., infere-se que o custo médio por homem é muito superior ao que se infere dos equipamentos individuais.
[4] Cabe ver os argumentos apresentados por Donald Kennedy em seu Ascensão e queda das grandes potencias e de John Keegan em A historia da guerra. Na complexidade de fatores que decidem por um ambiente bélico crônico há importantes diferenças entre as políticas de tecnologia e as pesquisas que se fazem sobre a experiência de cada guerra e o mecanismo financeiro que alimenta as empresas que produzem equipamentos e munições.
[5] Cabe aqui lembrar o argumento de Wicksell para explicar o ciclo, que parte da demanda de capital das empresas e que descarta a visão subjetiva de Schumpeter acerca de papéis inovadores de capitalistas individuais.